O dia 8 de janeiro de 2023 vai ficar marcado como a data de um dos mais degradantes eventos políticos da história do país. Nove meses depois da invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, 213 pessoas estão presas, doze já foram condenadas a penas que variam de catorze a dezessete anos de cadeia e outras 220 aguardam julgamento. As apurações conduzidas pela Justiça ainda buscam identificar eventuais mandantes e possíveis financiadores. Na quarta-feira 18, a Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso concluiu sua investigação sobre os ataques. Durante quase cinco meses, deputados e senadores ouviram 21 depoimentos, quebraram sigilos e analisaram milhares de documentos. O relatório aprovado tem 1 700 páginas, concluiu que houve uma tentativa de golpe de Estado e pediu o indiciamento de 61 suspeitos, entre eles, o ex-presidente Jair Bolsonaro, cinco ministros de seu governo e militares de alta patente. Apesar da aparente robustez, pouco ou quase nada de novo foi revelado.
Como tem sido praxe nas últimas CPIs, os interesses políticos mais uma vez se sobrepuseram às investigações. Os governistas estavam empenhados em provar que os ataques de 8 de janeiro eram parte de um plano golpista endossado por Bolsonaro e militares próximos a ele. A oposição, por sua vez, queria demonstrar que o que aconteceu naquele dia foi obra de uma inação deliberada do governo — uma tese sem qualquer evidência que a sustente. O golpismo, por sua vez, encontra amparo em fatos. O ex-presidente, como se sabe, acreditava — e acredita até hoje — que as eleições foram manipuladas. Depois do resultado, ele e alguns de seus auxiliares passaram a buscar “provas” de fraude para embasar uma investida pela anulação do pleito. Como essas provas não apareceram — até porque não houve fraude alguma —, o 8 de Janeiro teria sido a última tentativa de subverter o processo.
As duas narrativas já eram conhecidas antes da CPI. Esperava-se, portanto, que os deputados e senadores usassem as prerrogativas da comissão para obter evidências que amparariam uma ou outra versão. Não foi o que aconteceu. O relatório aprovado, muito bem fundamentado na parte teórica, avançou pouco além do que a Polícia Federal já havia apurado — o suficiente, no entanto, para que a relatora do caso, senadora Eliziane Gama (PSD-MA), concluísse que o dia 8 de janeiro foi o ápice de um processo golpista que começou a ser preparado por Jair Bolsonaro muitos anos antes. “Os fatos aqui relatados demonstram, exaustivamente, que Jair Messias Bolsonaro, então ocupante do cargo de presidente da República, foi autor, seja intelectual, seja moral, dos ataques perpetrados contra as instituições, que culminou no dia 8 de janeiro de 2023”, escreveu a relatora. O ex-presidente foi acusado de associação criminosa, abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado e violência política.
“Analisando-se a dissecação da dignidade da pessoa humana, sabe-se que o valor intrínseco da pessoa reside na singularidade que difere o humano do não humano.”
Trecho do relatório final da CPI
Além dele, ex-ministros e militares que ocuparam postos importantes também foram listados como envolvidos na trama que visaria a solapar a democracia (veja abaixo). O relatório foi aprovado e será encaminhado ao Ministério Público, a quem cabe agora indiciar ou não os acusados. O trabalho dos parlamentares, porém, deixou a desejar em relação às provas. Em alguns trechos, o relatório é enfático. Escreveu a relatora: “Jair Bolsonaro usou seus seguidores para escapar aos próprios crimes. Para cada um dos que nele participaram, o 8 de Janeiro foi uma tentativa de golpe de Estado. (…) A anarquia se espalharia. O Brasil se contagiaria. A República cairia”. Em outros, o parecer se assemelha a um trabalho acadêmico (de boa qualidade, aliás), teorizando sobre a democracia, a ascensão da extrema direita, a corrosão das instituições e até análises psicocomportamentais.
As comissões parlamentares de inquérito são um instrumento poderoso do Congresso. Nas últimas décadas, elas já desvendaram esquemas de corrupção que levaram ao impeachment de um presidente da República, à revelação de monumentais escândalos financeiros e à cassação de deputados e senadores. Mal usadas, serviram como arma de extorsão e chantagem política. A CPI do 8 de Janeiro não se encaixa em nenhum desses exemplos. Ela produziu um relatório sólido, mas patinou no seu objetivo principal que é investigar. Contaminada pela polarização política, a coleta de provas ficou em segundo plano. Bolsonaro, o principal acusado, nem sequer foi ouvido. Por discordar das conclusões de Eliziane Gama, a oposição apresentou um relatório paralelo, recheado de suposições sem respaldo em fatos, que, por óbvio, foi rejeitado. “Vergonha, vergonha”, gritaram os oposicionistas no fim da sessão. Já os governistas comemoraram, exibiram cartazes e caminharam pela Esplanada dos Ministérios empunhando a Constituição. Ficou a sensação de que o único resultado concreto de cinco meses de trabalho foi a vitória política de uma narrativa sobre a outra. Muitas perguntas ainda continuam sem resposta.
MILITARES NA MIRA
O relatório da comissão pediu o indiciamento de 22 oficiais — muitos dos quais eram da mais estreita confiança de Jair Bolsonaro
Augusto Heleno
Chefe do GSI ao longo de todo o mandato do ex-presidente, o general da reserva é acusado de participar de reuniões com intenções golpistas e de estar ligado a oficiais que deixaram de atuar na proteção do Planalto
Braga Netto
Ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, além de candidato a vice na chapa de Bolsonaro, o general é acusado de discutir propostas antidemocráticas e de estimular o acampamento em frente ao QG do Exército
Almir Garnier
O ex-comandante da Marinha teria apoiado a ideia de um golpe após as eleições, além de ter promovido, em 2021, um desfile de tanques enquanto o Congresso votava a proposta que mudava o sistema eleitoral
Freire Gomes
Ex-comandante do Exército no fim do governo Bolsonaro, é acusado de barrar o desmonte do acampamento montado em frente ao Quartel-General, de onde saiu parte dos vândalos do 8 de Janeiro
Mauro Cid
Ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel é acusado de travar conversas com teor golpista. No celular dele foi encontrada uma minuta que previa uma ação no STF e a decretação de uma intervenção militar
Publicado em VEJA de 20 de outubro de 2023, edição nº 2864