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Christiane Torloni: A floresta tem pressa

A pandemia trouxe a oportunidade de mudarmos a nossa relação com o planeta. É preciso agir agora para salvar a Amazônia

Por Christiane Torloni*
Atualizado em 28 ago 2020, 11h53 - Publicado em 28 ago 2020, 06h00

A defesa da Amazônia é uma luta para uma vida inteira. É imprescindível dedicar grande parte do tempo, da energia, a essa causa. Ao mesmo tempo, o chamado é mais forte do que vontades individuais — não se trata de uma escolha. Há pessoas que acreditam que têm a chance de optar por isso ou aquilo, mas nem sempre é o caso. Pela minha personalidade, de pessoa que acreditou que poderia acabar com a ditadura e participou do movimento das Diretas Já, eu me identifico com essa luta. Parafraseando Fernando Gabeira, em vez da luta armada, temos de fazer uma luta amada. Faço isso há mais de trinta anos, de um lugar para outro. Com o tempo, porém, percebi que o viés político é intragável. Na área ambiental, as pessoas não trocam a alma pelo poder. Encontrei um nicho mais confiável no ambientalismo, no qual as pessoas não ficam preocupadas se vão aparecer na foto. Elas enfrentam problemas gravíssimos: os nossos ativistas caem em emboscadas e muitos deles precisam trabalhar com colete à prova de balas. Pode não ser o lado dos que vencem, mas prefiro estar do lado certo, como diria Darcy Ribeiro.

Nos anos 80, participei da reabertura do Teatro Amazonas. Foi a primeira vez que vi o Rio Negro. Essa conexão me levou a fazer parte da Fundação Amazonas Sustentável, que, neste momento, está demonstrando com mestria o que foi construído ao longo dos últimos anos. São 98 entidades que fazem parte dessa aliança, que colaboram para que os recursos cheguem a lugares remotos da floresta durante a pandemia. É um trabalho de formiguinha — mas são muitas formiguinhas. Sabemos que estamos salvando vidas e que a sociedade civil pode e deve contribuir com esse papel. Esse trabalho é um respiro de alívio para o momento que estamos vivendo.

Ao pensar no cenário geral do país, diria que é desesperador o que está acontecendo. São vidas, histórias e biografias jogadas no lixo. Existe um propósito claro de destruição e a inteligência está a serviço da demolição. Só isso explica o motivo pelo qual as pessoas nos lugares certos são exoneradas. É como se fosse um mapa de extinção: ICMBio, Ibama, Funai, Secretaria da Cultura, Funarte… Não é por acaso. Há uma estrutura de raciocínio absolutamente clara. E não podemos nos enganar: há quem esteja muito feliz com esses resultados, gente que trabalhou para que isso acontecesse e está aplaudindo de pé. Não adiantou ser uma garota romântica nos anos 80, dizer que íamos mudar o mundo, e trinta anos depois reconhecer que nossos sonhos e propósitos foram traídos. A educação que não se fez, a estrutura de saúde que não se fez, a política que se desmontou. É triste passar uma vida inteira para ver o atual cenário como resultado.

Por outro lado, a sociedade percebe que está correndo grande risco de um retrocesso ainda maior, absoluto, em todos os sentidos: existenciais, sociais e econômicos. A vaca está indo diretamente para o brejo. Não é uma questão de “se”, a questão é “quando”. Nos últimos anos, fortaleceu-se a política da divisão. Cores representam quem pertence a qual lado. Com tantas tonalidades na bandeira do Brasil, como o país se tornou uma nação de uma cor só? Houve um momento de muita intolerância e que nos trouxe ao cenário que estamos vivendo agora. Até mesmo intelectuais de primeira ordem dão tons de intolerância absoluta. Estamos colhendo o que plantamos, e me incluo nisso. Por isso, e por tantos outros motivos, eu me afastei da política.

“Mesmo com tantas tonalidades na bandeira do Brasil, o país se tornou uma nação de uma cor só”

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Ainda em 2006, durante a preparação e as gravações da minissérie Amazônia, de Galvez a Chico Mendes, deparei pela primeira vez com a devastação da floresta. Tive encontros com personalidades que iriam mudar a minha vida, como ribeirinhos, lideranças indígenas e ativistas. Quando vi um cenário de destruição, senti o mesmo chamado da época das Diretas Já. Não era à toa que eu estava ali, naquela coordenada, naquele momento histórico. Senti que eu tinha algo a fazer. Ao longo de um ano e meio, sem a força da internet que temos hoje, coletamos 1,5 milhão de assinaturas para um abaixo-assinado em defesa da Amazônia. Fizemos vigília no Congresso Nacional. Foi a minha reaproximação com o sistema político brasileiro, mas apenas para desenhar esse mapa de defesa do meio ambiente. Como artista, decidi me expressar com a produção de um filme, o Amazônia, que foi meu despertar para a “florestania”. Acredito que este seja parte do meu papel. Compartilhar histórias e catalisar pessoas para dar voz a elas, dar visibilidade a quem não tem esse espaço no Brasil. Eu, que sempre dou voz a uma personagem, pude ser a fibra óptica de muitas vozes que precisaram de espaço para falar. Muitas delas, inclusive, já faleceram.

Pelo bem ou pelo mal, a pandemia fez uma coisa acontecer. Durante o isolamento, a população teve a oportunidade de perceber como o planeta melhora quando os humanos estão guardados em casa. Se as pessoas não usarem o tempo para refletir e não sujar o planeta de novo, se a pandemia não for uma grande quebra de paradigma da nossa relação com o planeta, de nada servirá este momento de pausa. É um convite único. Será uma grande saída para o Brasil perceber que o nosso território guarda um grande cristal, que é a Amazônia. De repente, viramos os grandes exportadores de uma pandemia e de ferramentas da mudança climática no mundo, por causa das emissões de gases poluentes com o desmatamento. Talvez agora pode ser o momento de mudar o comportamento e ganhar milhões de ativistas ambientais. Caberá ao consumidor questionar a origem da carne, da soja, de qualquer produto. É uma questão de consciência. Caso isso não aconteça, vamos perder o trem da história, coisa que vem ocorrendo há trinta anos. A tal da promessa que o Brasil poderia ser não existe mais: não podemos mais ser promessa. A ação tem de ser agora.

*Christiane Torloni é atriz, diretora e vencedora de diversos prêmios da dramaturgia

Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702

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