Há barreiras enormes em meio à luta contra o assédio sexual, incluindo medo de exposição pública e o temor de enfrentar uma luta desigual no ambiente machista da Justiça no qual, em boa parte das vezes, a vítima é humilhada e o abusador acaba impune. Em 2017, o fenômeno do MeToo nos Estados Unidos teve repercussão mundial ajudando a mobilizar pessoas e a quebrar o silêncio. Guardadas todas as proporções, o embrião de um movimento semelhante se formou no Brasil recentemente, quando começaram a circular reportagens sobre ataques que a atriz Dani Calabresa teria sofrido do diretor Marcius Melhem na época em que ele era superior hierarquicamente a ela (chegou a ocupar nos últimos anos o posto de chefão do humor na Rede Globo). A imprensa publicou episódios como o de uma festa de confraternização do elenco da TV ocorrida no Rio no dia 5 de novembro de 2017. Na ocasião, segundo se noticiou, Melhem tentou beijar Calabresa por mais de uma vez. Na porta do banheiro, ele a teria imobilizado com as mãos para forçar uma aproximação. Em seguida, ainda de acordo com uma dessas publicações, Melhem abriu as calças, exibindo seu pênis.
A colegas, a atriz confidenciou que Melhem a havia assediado mais de uma vez (em outro episódio, menos violento, ela relatou que o diretor apareceu de surpresa em seu camarim no Projac, a central de estúdios da Globo, pedindo que ela tirasse o roupão para ver seu corpo de biquíni). Abalada, a atriz desabafou que as situações lhe causavam graves transtornos emocionais e que uma perseguição profissional teria sido desencadeada pela recusa dela em ceder às investidas. O caso acabou sendo levado ao compliance da emissora, que, alegando sigilo, nunca divulgou o resultado do trabalho, limitando-se a dizer que tudo foi devidamente apurado. Depois de ficar cinco meses afastado do trabalho a pretexto de cuidar de um problema de saúde de sua filha no exterior, Melhem teve seu contrato encerrado. Calabresa nunca falou publicamente sobre a história e, até o momento, não procurou reparação na Justiça. Quando o caso do suposto crime veio à tona, postou em uma de suas redes sociais que “nunca quis ser vista como uma mulher assediada”, mas que, para recuperar a própria saúde, “precisou se defender”.
RELAÇÃO DE AMIZADE
Conversas que Marcius Melhem anexou ao processo para tentar mostrar que ele e Dani Calabresa tinham proximidade a ponto de fazerem brincadeiras de cunho sexual, como insinuar troca de nudes e ele chamá-la de “gostosa”
Envolvendo dois nomes da nova geração do humor brasileiro, a história ganhou um novo capítulo nesta semana: o acusado decidiu buscar reparação nos tribunais. Melhem moveu pelo escritório Panella Advogados uma ação por danos morais contra Calabresa na quinta 14, na Justiça estadual de São Paulo. Nela, nega as acusações e pede que a ex-subordinada seja condenada ao pagamento de uma indenização de 200 000 reais, que seriam doados ao Retiro dos Artistas. Além disso, o ex-diretor cobra que a humorista se responsabilize pelos pagamentos de seus tratamentos psiquiátrico e psicoterápico e que faça uma retratação pública. A tese central é que as denúncias vieram à tona apenas após um desentendimento profissional entre eles, em 2019. VEJA teve acesso em primeira mão ao processo. O ex-diretor reproduz uma série de mensagens trocadas entre os dois pelo WhatsApp e anexa áudios da atriz que demonstrariam o bom relacionamento entre ambos, antes e depois do suposto episódio de assédio na festa de 2017, tentando refutar o argumento de que ela teria ficado traumatizada. Para os advogados do ator, trata-se de um conteúdo de tom “jocoso e íntimo”, com espaço para mensagens de cunho sexual. De acordo com a peça, exemplos dessa liberdade ficam claros na troca de três mensagens entre os dois, nas quais eles falam sobre nudes. Em um dos WhatsApp, de 29 de junho de 2017, Melhem escreve o seguinte: “Eu que agradeço. Pela confiança, pelo carinho, pelo talento… e ok pelos nudes que você me mostrou. Ou seja: talentosa e gostosa”. Antes, no início do mês, ele já havia escrito: “Te amo sem você me mandar um nude, olha que puro!”. Ao que Calabresa responde, depois de uma risada: “Mostrei sem vc pedirrrr!!!!”.
Nessa versão apresentada à Justiça, Melhem se esforça para desconstruir as informações mais picantes e comprometedoras veiculadas sobre o caso. No episódio do biquíni, por exemplo, argumenta que o trabalho ocorreu numa praia, e não no Projac. Para sustentar isso, reproduz o roteiro da gravação e uma imagem do Instagram da atriz do dia da cena, na areia (veja quadro na pág. 67). Uma boa parte do processo é dedicada à versão de Melhem para a festa de 2017. Segundo o diretor, na ocasião, ele e Calabresa “trocaram beijos e carinhos” em uma área reservada, de forma consensual. No mesmo evento, Melhem afirma ter ficado com uma amiga convidada por Calabresa. Ainda relacionada à noitada, ele reproduz uma mensagem da atriz no grupo de WhatsApp Zorra em que ela diz no dia seguinte que a festa foi um “bapho”. Em outra mensagem, trocada entre ela e Melhem um mês depois, num contexto de brincadeira entre ambos, a atriz escreve: “Deus te deu vários dons” e, entre os emojis, coloca uma berinjela. Em seguida, completa: “Desculpa, o emoji certo era esse” — e envia a figura de um microfone.
DEPOIS DA FESTA
Mensagens de Dani Calabresa enviadas após a festa na madrugada de 5/11/2017, na qual, segundo denúncia, Marcius Melhem a teria assediado — na primeira, para o grupo Zorra, um dia depois, ela elogia a festa, que chama de “bapho”; na segunda, no dia 2/12/2017, ela supostamente usa uma berinjela para fazer referência ao órgão sexual do diretor
O documento da defesa de Melhem anexa ainda áudios em que Calabresa diz ser fã do chefe e o elogia tempos depois dessa festa. Segundo os advogados, seriam provas de que o comportamento da atriz “é absolutamente incompatível com aquele esperado” de uma vítima de assédio. A defesa do humorista deixa evidente a estratégia de emplacar a tese de que a relação entre Melhem e Calabresa era amistosa até haver um desentendimento ocorrido em maio de 2019, em meio às tratativas para um programa inspirado no Furo MTV, do qual Calabresa havia participado. Ela nutria a ideia de fazer algo na mesma linha na TV Globo, mas ficou decepcionada com o formato proposto. Nesse contexto, os advogados reproduzem uma mensagem de Melhem: “Você chorar, reclamar que não tem seus autores, que tinha ator demais, etc, humilhou muita gente ali. Que chorou depois também”.
Coincidência ou não, Melhem saiu da emissora pouco tempo após a investigação do compliance. Após o seu retorno da licença de cinco meses, o contrato dele foi encerrado. Na mensagem na qual comunicou a saída de Melhem, em agosto do ano passado, a emissora registrou a parceria de dezessete anos de sucessos do diretor, elogiando ainda a contribuição dele na renovação do humor da Globo.
Na ação protocolada na Justiça, Melhem busca reparação também contra pessoas que considera terem feito posts ofensivos a ele nas redes sociais na esteira da repercussão do caso, como os humoristas Danilo Gentili e Rafinha Bastos. Antes disso, no fim do ano passado, a defesa de Melhem já havia entrado com uma representação na OAB contra a advogada Mayra Cotta, que deu entrevistas dizendo representar seis vítimas de assédios de Melhem e seis testemunhas desses casos. Algumas dessas pessoas que disseram ser vítimas deram relatos à imprensa, mas sob condição de anonimato. Dentro dessa linha, o ataque a Calabresa estaria longe de ser um caso isolado. Procurada por VEJA para falar das mensagens trocadas entre Calabresa e Melhem, a defesa da atriz não quis se pronunciar.
MAIÔ VERMELHO
Documentos com os quais Marcius Melhem tenta provar que é falsa a acusação de que tentou ver Dani Calabresa em traje de banho no camarim do Projac, já que a gravação teria ocorrido em uma praia
Casos envolvendo crimes como os de assédio sexual são complexos, primeiro porque, em grande parte, acontecem sob as sombras, sem testemunhas. O modus operandi do assediador é esperar estar a sós com a vítima. É por isso que a jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, atribui grande valor de prova aos depoimentos das vítimas e testemunhas. “A palavra delas tem um peso muito grande”, explica Bianca Alves, coordenadora do Grupo de Trabalho de enfrentamento à violência de gênero da OAB-RJ. Os muitos casos que não têm um amplo arco de testemunhas encontram um Judiciário majoritariamente masculino, o que acaba inocentando os réus porque, diante da dúvida, se absolve o acusado. Por isso, em muitas situações, uma das vias é levar o caso à imprensa, para estimular que outras vítimas sejam encorajadas a testemunhar. “Quanto mais gente aparece, mais difícil é para deslegitimar”, explica Bianca.
Ativistas em defesa do direito da mulher dizem ser comum ainda que os acusados tentem demonstrar, muitas vezes, que a vítima agia como se nada tivesse acontecido, mantendo boa relação com o assediador. “A primeira reação de quem é acusado é desqualificar a mulher. Muitas vezes, ela teme entrar na Justiça, teme a exposição, teme perder o emprego”, analisa Renata Jardim, integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe em Defesa dos Direitos das Mulheres. Pesquisadoras dizem que, não raro, a assediada mantém a situação porque está diante de uma relação de chefe e subordinada. Fato é que crimes como esses, cuja pena é de um a dois anos de prisão, ainda representam um enorme desafio para o Judiciário, a quem cabe a responsabilidade de decidir quem tem razão. Dada a repercussão do escândalo, um julgamento justo e cuidadoso para um caso como o de Daniella Calabresa e Marcius Melhem pode representar um avanço para a sociedade.
OUÇA DOIS ÁUDIOS QUE A DEFESA DE MARCIUS MELHEM ANEXOU AO PROCESSO
Data: 01/10/2018 – Dani Calabresa faz elogios ao trabalho desenvolvido por Marcius Melhem na TV Globo.
Data: 15/01/2019 – A atriz fala sobre a possibilidade de se encontrarem para ver um quadro do Fantástico.
Publicado em VEJA de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721