A reação foi imediata. Na semana passada, logo depois de a Câmara dos Deputados aprovar, em votação-relâmpago, a urgência do projeto de lei (PL) antiaborto, que equipara a interrupção da gestação acima de 22 semanas a homicídio, uma capa de VEJA publicada em 1997 viralizou nas redes sociais. Em setembro daquele ano, a revista produziu uma incômoda, necessária e urgente reportagem com a seguinte chamada: “Eu fiz aborto”. Em oito páginas, uma dezena de mulheres, famosas ou desconhecidas, relatava a dor e a angústia de ter abortado, por diferentes razões e em situações econômicas diversas. Naquele momento, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovara a regulamentação do aborto legal, prevista no Código Penal desde 1940, para os casos de estupro e de risco de vida para a gestante (em 2012, o Supremo Tribunal Federal diria sim também à descriminalização em ocorrências de fetos sem cérebro).
A retomada de um trabalho jornalístico feito há quase trinta anos ilumina a permanente postura de VEJA em defesa dos direitos humanos e do bom senso, sempre atenta a problemas de saúde pública. Ao mesmo tempo, contudo, a lembrança como forma de protesto revela um quadro dramático: pressionado pela ala conservadora do Congresso, o país parece andar de lado, ou mesmo para trás, como se não tivéssemos saído de 1997. Na França, onde o aborto é legalizado há quase cinquenta anos, há menos de uma morte anual em decorrência do procedimento. No Brasil, uma mulher morre a cada dois dias em razão de complicações do aborto, segundo os números mais recentes do Ministério da Saúde. Outro dado assustador: a incidência do aborto clandestino é o dobro entre mulheres pobres e o triplo entre mulheres negras. Ou seja, a legislação produz evidente discriminação social, como mostra a reportagem a partir da pág. 22.
É inadmissível, portanto, que mulheres que abortarem tenham de cumprir, conforme o PL apresentado, até vinte anos de prisão, o dobro da pena de quem comete um estupro. Seria punir a vítima pelo crime que sofreu. Felizmente, agora, em virtude de uma enérgica reação da sociedade, o projeto caminhará mais lentamente no plenário. O ministro do STF Luís Roberto Barroso, em um histórico pronunciamento em 2016, deu o tom exato: “Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima. Todos têm o direito de se expressar e de defender dogmas, valores e convicções. O que refoge à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente controvertido, criminalizar a posição do outro”. O direito de escolha é inegociável.
Publicado em VEJA de 21 de junho de 2024, edição nº 2898