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Briga entre sócios de hotel de luxo em Orlando atinge governo brasileiro

A União possui 65% do empreendimento e administrador do hotel foi denunciado por crimes como caixa 2, cooptação de um juiz federal e evasão de divisas

Por Da Redação Atualizado em 6 Maio 2020, 17h17 - Publicado em 5 Maio 2020, 10h09
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  • Na relação de milhares de imóveis que pertencem à União, um dos itens mais valiosos é o Hotel Crowne Plaza, em Orlando. Localizado na Universal Belvedere, ponto nobre da cidade americana nos arredores do complexo de parques da Disney, o estabelecimento inaugurado em 2003 tem 436 quartos e diárias a partir de 300 dólares (podem chegar a 5 000 dólares no caso da suíte presidencial). O empreendimento está no centro de um imbróglio que respinga no governo brasileiro a partir de processos em curso na Justiça americana e brasileira. A extensa relação de crimes denunciados no caso inclui evasão de dívidas, cooptação de um juiz federal por uma quadrilha, lavagem de dinheiro e gestão temerária, entre outros.

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    Como o governo federal se tornou dono de um hotel em Orlando? Uma participação de 65% do empreendimento passou para as mãos do governo brasileiro em 2005. Essa cota de 65% na sociedade do hotel constava na relação de bens confiscados pela Justiça Federal que faziam parte do patrimônio de João Arcanjo Ribeiro. Acusado de liderar o crime organizado no Mato Grosso, o Comendador, título que lhe foi concedido pela Assembleia Legislativa do estado do Centro-Oeste, passou quinze anos na prisão e acabou detido novamente em maio de 2019 por envolvimento com o jogo do bicho.

    A partir do momento em que a União assumiu 65% do controle do hotel (os 35% restantes pertencem ao empresário brasileiro Zilberto Zanchet), o interventor Francisco Bomfim foi nomeado pela Justiça do Mato Grosso em 26 de junho de 2015 como o encarregado de administrar o empreendimento, que gera um faturamento mensal equivalente a 24,7 milhões de reais e lucro de quase 9 milhões de reais a cada trinta dias. Considerando-se que o governo brasileiro possui 65% do negócio, ele teria rendido aos cofres da União aproximadamente 87,7 milhões de reais ao longo de quinze anos. Ninguém sabe o que aconteceu com esse dinheiro. Se não bastasse, conforme despacho de Newton Pereira Ramos Neto, juiz federal em auxílio à corregedoria do Tribunal Regional Federal, o administrador Bomfim extrapolou seu papel de administrador, agindo como se fosse dono do empreendimento e tomando decisões financeiras importantes e questionáveis, à revelia da Justiça brasileira e americana. “A regra básica de gestão deve ser a intervenção mínima: a atuação do administrador deve ser restrita à boa conservação dos bens, entregando ao juízo as quantias recebidas”, escreveu Ramos Neto (leia aqui a decisão).

    Somente em gastos pessoais, Bomfim, um fiscal de rendas aposentado e sem experiência prévia em administração de hotéis, consumiu cerca de 3 milhões de reais por ano, de acordo com cálculos que constam no processo. Por iniciativa de Bomfim, o Crowne Plaza fez uma doação de mais de 2 milhões de reais à Igreja Batista Americana e do Brasil. “Parece inusitado o procedimento de doação de haveres em favor de entidade religiosa sem aval do Poder Judiciário, embora o administrador judicial alegue que essa providência é compensada futuramente com benefícios fiscais previstos na lei americana”, observou o juiz Ramos Neto, referindo-se à justificativa de Bomfim para o ato de caridade. Não foi a operação mais vultosa e suspeita de sua gestão. Em 25 de junho de 2015, Bomfim sacou 22 milhões de reais do caixa do hotel para comprar uma fazenda de gado no Mato Grosso, sem aprovação do sócio minoritário Zanchet e sem comunicação inicial para a União e ao Ministério Público Federal – fatos reconhecidos pelo próprio Bomfim nos autos.

    De acordo com denúncia feita à corregedoria do Conselho Nacional de Justiça – leia aqui o documento – , Bomfim livrou-se de maiores complicações no caso da compra da fazenda graças à ajuda de Paulo César Alves Sodré, juiz da 7ª Vara Federal do Mato Grosso. “Uma sofisticada organização criminosa cooptou um magistrado federal para encobrir os crimes, tentar maquiar de legalidade os atos praticados pelo interventor indicado por ele próprio e proteger os demais integrantes da referida organização, desviando e se apropriando de milhões de dólares, causando terrível prejuízo ao erário público e a União, além da vítima requerente”, afirma o documento encaminhado ao CNJ.

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    Em decisão de 28 de março de 2016 (portanto, posterior à operação da transferência do dinheiro ao Brasil para a aquisição da fazenda no Mato Grosso), Sodré avalizou a operação. Questionado na Justiça sobre o ato, o juiz alegou que os gastos do hotel são judicialmente controlados, mas reconheceu que parte dos investimentos foi realizado pelo administrador sem prévia autorização e com manifestação contrária do Ministério Público Federal e da União. “Esse ato do juiz Sodré serviu para encobrir o crime praticado por Bomfim”, acusa o advogado Nilson Pedro da Silva, defensor de Zanchet.

    Já com uma ordem da Justiça americana para não enviar mais valores ao Brasil depois da aquisição da propriedade, Bomfim remeteu mais 8,2 milhões de reais à fazenda no Mato Grosso. Questionado no processo porque havia descumprido a ordem, ele alegou que o dinheiro era necessário à manutenção da fazenda. Na ação, Bomfim é acusado também de outras aquisições irregulares, como um automóvel Toyota Hilux e 6.000 cabeças de gado. Sobre os investimentos de um hotel de luxo de Orlando em propriedades rurais brasileiras, o juiz Ramos Neto faz a seguinte observação: “Traduz-se em atividade de difícil fiscalização e sujeita a riscos de mercado e eventos naturais, o que reforça a ideia de que a operação comercial pode vir a ser considerada temerária, especialmente quando não há notícia de qual o critério utilizado para fixação do preço de aquisição dos bens”.

    A atuação de Sodré, da 7ª Vara Federal do Mato Grosso, no caso do Crowne Plaza chamou atenção também porque o juiz figura como testemunha de defesa de Bomfim no processo movido contra o administrador na Justiça americana pelo sócio minoritário Zanchet. “Ou seja, o mesmo juiz no Brasil que nomeou um administrador acusado de vários crimes virou testemunha de defesa desse mesmo administrador em um processo nos Estados Unidos para garantir que a compra da fazenda de gado foi autorizada pela Justiça brasileira”, afirma o advogado Silva.

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    Resort Crowne Plaza, em Orlando, nos EUA (//Divulgação)
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    Zanchet diz ter sido apresentado a Arcanjo por um corretor quando tentava levantar recursos para erguer o Crowne Plaza. Acabaram virando sócios, com participações praticamente iguais no negócio. “Na época, o Arcanjo tinha ficha limpa, parecia uma pessoa de bem”, jura Zanchet. Logo a parceria rendeu dores de cabeça. Alegando que Zanchet não tinha capital para honrar parcelas do financiamento contratado para erguer a obra, Arcanjo reduziu para 2,68% a cota do sócio. Zanchet entrou com processo na Justiça americana para recuperar a participação de 35%, o que recentemente acabou ocorrendo (ou seja, curiosamente, foi uma corte dos Estados Unidos que defendeu o patrimônio de um cidadão brasileiro e reconheceu seus direitos).

    Na mesma ação, que corre na Nona Comarca Judicial do Município de Orange, nos Estados Unidos, há registros de uma contabilidade paralela do hotel (de acordo com os autos, o caixa 2 organizado por Bomfim tem a participação de Lis Rejane Oliveira, amiga pessoal e braço direito do administrador na gestão do Crowne Plaza). Agora, a defesa de Zanchet pretende cobrar nos tribunais dos Estados Unidos uma dívida de cerca de 260 milhões de reais referente aos lucros do hotel não repassados a ele pelo administrador do empreendimento. Para um advogado americano que acompanha de perto o processo por lá, uma quadrilha tomou conta do Crowne Plaza ao longo de mais de uma década e escapou até agora impune utilizando-se de uma brecha na Justiça. “A gangue age graças a um limbo jurídico entre os Estados Unidos e o Brasil”, afirmou ele a VEJA, sob a condição de anonimato.

    Procurados pela reportagem de VEJA, o administrador Bomfim e Lis Rejane ainda não se manifestaram sobre o caso. Em respostas encaminhada à VEJA por email, o juiz Sodré informa que, no caso do investimento realizado na compra de uma fazenda, “foi feita a análise por este juízo, após ouvir o MPF e a União, tendo sido homologada a operação comercial referida em decisão fundamentada nos autos, sem que tenha ocorrido recurso por parte do MPF ou da União”.  Quanto ao episódio em que figura como testemunha de Bomfim, Sodré informa que consultou sobre a questão o Ministério Público Federal e a União: “Tanto o MPF, quanto a União se manifestaram favoravelmente à participação do magistrado no ato processual, bem como informaram que tinham interesse em também participarem. Com a anuência do MPF e da AGU, o Juiz Federal Paulo Cézar Alves Sodré, em decisão fundamentada anuiu em participar, porém, expressamente ressalvou que a sua participação não seria na condição de testemunha, eis que a ele era vedada tal conduta. A sua participação se daria a título de Cooperação Jurídica Internacional e só poderia se manifestar sobre o fato de Francisco Ferreira Bomfim ainda exercer o encargo de Administrador Judicial. Ficou consignado na decisão do Juiz Federal que ele não se manifestaria na audiência sobre os fatos ou mérito da ação. No dia audiência por videoconferência, se fizeram presentes na sala da 7ª Vara da SJMT, o Juiz Federal, a Procuradora da República e a Advogada da União. Portanto, uma cooperação jurídica internacional, feita sob total transparência”.

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    O caso do Crowne Plaza está longe de terminar. Segundo Zanchet, o plano de Bomfim é vender o hotel a “preço de banana” nos Estados Unidos. “Se isso ocorrer, eu e o governo brasileiro vamos sair no prejuízo”, afirma. “Quero que a Justiça brasileira afaste o Bonfim da administração para que, em um futuro próximo, eu possa exercer minha preferência de compra como sócio minoritário e reaver o controle do Crowne Plaza.” O imbróglio deve seguir em curso na Justiça americana e, no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça aguarda perícias relacionadas à acusação para definir os rumos do processo. Mesmo para um país como o Brasil, acostumado a níveis quase insuportáveis de corrupção e de mau uso do dinheiro público, o episódio do Crowne Plaza é um verdadeiro espanto.

    NOTA DA REDAÇÃO

    Após a publicação desta reportagem, a Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) enviou a nota abaixo:

    1. O Juiz Paulo Cézar Alves Sodré está em exercício junto à 7ª Vara Federal do Mato Grosso desde final do ano de 2010 e conduz o processo relativo à administração dos bens mencionados na matéria desde o ano de 2011. O administrador Francisco Ferreira Bomfim foi nomeado no ano de 2005 pelo então juiz do processo.

    2. Todas as operações descritas na reportagem, atinentes a nomeação de administrador judicial (feita por outro magistrado) e gestão de bens, tiveram manifestação prévia do Ministério Público Federal e Advocacia-Geral da União, tendo sido ainda confirmadas pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em mais de uma oportunidade. Trata-se de matéria de natureza eminentemente jurisdicional, a ser questionada nos autos dos respectivos processos judiciais.

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    3. O processo de “Correição Parcial” aludido na matéria teve, do mesmo modo, natureza de recurso judicial, tendo sido inclusive arquivado em dezembro de 2019, por ausência de ilegalidade.

    4. A empresa mencionada na reportagem tentou em três processos que tramitaram perante a 7ª Vara Federal destituir o administrador judicial. Após ouvir a União e o Ministério Público Federal, o Juiz Paulo Cézar Alves Sodré indeferiu os pedidos e a empresa, após essas decisões voltou-se contra o próprio magistrado perante o Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

    5. O trecho da reportagem no qual se lê “uma sofisticada organização criminosa cooptou um magistrado federal para encobrir os crimes” não corresponde à verdade dos fatos.

    6. A Constituição Federal, ao garantir a independência de juízes e tribunais, impõe que decisões judiciais sejam contestadas pelos meios e recursos adequados, previstos na legislação processual vigente no país.

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    7. A AJUFE tem se notabilizado pela defesa da independência dos juízes federais e de direitos fundamentais como os da liberdade de expressão e de imprensa. O Juiz Federal responsável pelo caso sempre se colocou e sempre estará à disposição para atender demandas dos veículos de comunicação.

    A AJUFE entende ser importante a interlocução dos magistrados federais com os jornalistas para tirar dúvidas, fornecer esclarecimentos e estabelecer contraditórios sempre que for necessário, afastando qualquer dúvida sobre o exercício independente da jurisdição.

    DIRETORIA DA AJUFE

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