As revoluções burguesas que sacudiram a Europa a partir do século XVII trouxeram embutida a ideia de que a esfera privada tinha um valor fundamental. Foi a senha que reinventou a percepção sobre os vários ritos da vida, entre eles casamento e filhos. O mito do instinto materno ganhou espaço, algo que seria inerente às mulheres, programadas para desempenhar tão nobre papel. A carga sobre elas pesou ao longo dos séculos que se seguiram, pressionadas entre o ingresso no mercado de trabalho e uma rotina multitarefas difícil de equilibrar, mesmo nos dias de hoje. Em um mundo cada vez mais complexo, o exercício da maternidade exige lidar com novas gerações expostas a uma infinidade de estímulos e altamente questionadoras. As mães se veem ainda torpedeadas por um monte de informações sobre o que é certo ou errado e, segundo muitas revelam agora de forma contundente, sentem-se constantemente avaliadas pelos outros no modo como criam a prole.
Essa sensação de permanente escrutínio, tendo os dedos da sociedade apontados em sua direção, é universal. Uma recente pesquisa feita pelo Instituto Ipsos, que mediu a temperatura do fenômeno em 28 países, mostra que 38% se dizem frequentemente julgadas. Entre as brasileiras, o índice sobe para 46%, ou seja, quase a metade desempenha a maternidade com o sentimento de que os que estão a seu redor, um grupo muito além da bolha familiar e dos círculos de amizade, consideram que elas fazem escolhas equivocadas. Entre as razões que as tornam alvo da crítica alheia aparecem a maneira como controlam o comportamento da criança (36%) e em que medida impõem limites (49%) — seja porque são permissivas, seja porque são rigorosas demais com os filhos. “Os comentários endereçados às mães vêm de todos os lados, inclusive de pessoas que nem sequer são pais e não têm noção do que estão falando”, observa Priscilla Branco, uma das autoras do estudo.
Meter a colher na condução da educação do filho dos outros é um clássico que atravessa gerações. Os pitacos envolvem desde as operações mais básicas — o jeito de segurar o bebê na hora do banho, como acalmá-lo, com que assiduidade amamentá-lo — até desafios como frear uma birra ou ministrar a dose certa do castigo. O tribunal segue firme quando a mãe se lança em jornadas extensas de trabalho e preserva sua vida social. Olhares de reprovação sempre rondaram a maternidade, só que as mulheres costumavam se calar, enquanto hoje começam a se manifestar sem medo de ser repreendidas — mesmo que o sejam. Os palpiteiros do século XXI agem à vontade sob o impulso de ventos antigos, culturais, que ainda situam a mulher na função de “cuidadora”. Saiu do roteiro, digamos, padrão, e lá vêm as farpas. “Parte da sociedade compreende mal qualquer desvio do que é esperado nesse campo e nutre uma expectativa que não condiz com nenhuma realidade, especialmente com a mulher hoje emancipada e desempenhando um sem-número de papéis”, diz o antropólogo Bernardo Conde, da PUC-Rio.
O assunto, como não poderia ser diferente nestes tempos, vem ganhando as redes, o que ajuda a tirá-lo do rol dos tabus. Recentemente, a atriz Thaila Ayala, 35 anos, pôs lenha no debate ao postar um vídeo em que desabafa contra críticas que passou a receber na internet desde o nascimento de Francisco, de 2 meses. “Temos medo de ser julgadas e por isso falamos pouco sobre as dificuldades de ser mãe”, afirma a atriz. O tema foi levantado também em um muito comentando filme da Netflix, o excelente A Filha Perdida, baseado no livro da misteriosa escritora italiana Elena Ferrante, em que a personagem central, vivida por Olivia Colman, toma a radical decisão de se afastar por três anos das duas filhas, deixando-as com o marido, de quem se separa, e de uma rotina que a sufoca. Ao expor os dissabores da maternidade, ela se instala na mira de quem não digere sua postura franca, que colide com a visão romanceada ainda em vigor. O julgamento dos outros pode agravar a culpa que persegue várias representantes do sexo feminino. “A mulher, diferentemente dos homens, se cobra por ter dificuldade em conciliar trabalho, estudo e tantos outros interesses com a maternidade”, afirma a psicóloga Fabiana Esteca. É um sentimento tão claro e acentuado que ganhou nome, guilty all the time (culpadas o tempo todo), ou simplesmente GAT.
Estudiosos dedicados às questões da maternidade advertem que a pior das armadilhas é sair em busca de um gabarito, tentando vestir o mesmo figurino de outras mães. A bússola para a criação dos filhos, afinal, tem a ver com o caldo cultural de cada família. A produtora Renata Pimenta, 37 anos, por exemplo, permite que Pedro, de 4, explore espaços públicos sem segurá-lo pela mão quando anda pela calçada. Seu objetivo é incentivá-lo desde muito cedo a desenvolver autonomia e responsabilidade. “Estou sempre por perto, supervisionando, e ele entende direitinho”, assegura. A decisão, contudo, não passou incólume. “Sempre fazem comentários negativos, até xingamentos já ouvi”, conta Renata. Conselheiros não faltam por aí para tecer suas teses, mesmo que ninguém os tenha consultado. Desde a gravidez, Beatriz Milagre, 25 anos, mãe das gêmeas Catarina e Cecília, de 5 meses, ouve mil e um pitacos. “Quando as meninas nasceram, percebi quanto a maternidade é romantizada e comecei a me sentir mal por não fazer as coisas do jeito esperado”, reconhece a administradora de empresas.
Embora não haja um único roteiro a ser seguido, e parte da graça da vida é a travessia de aprendizado, a ciência já chegou a algumas conclusões que podem ajudar a iluminar o atribulado dia a dia. De uma educação rígida no passado mais remoto, foi-se a um outro polo no anos 1970, quando se disseminou o movimento “autoestima positiva”, em contraposição ao que era visto como uma camisa de força para o livre pensar. Os especialistas da atualidade defendem algo no meio do caminho, um misto de autonomia e limites.
O polêmico Grito de Guerra da Mãe Tigre, da escritora americana descendente de filipina Amy Chua, esquentou a discussão sobre a disciplina como ingrediente essencial à educação. Foi alvejada por muita gente pelo excessivo rigor, mas pôs à mesa a incontornável reflexão sobre o equilíbrio entre o sim e o não. Outra obra que fez o debate ferver foi o best-seller Crianças Francesas Não Fazem Manha, da americana Pamela Druckerman, que se mudou para Paris e ali notou que meninas e meninos eram menos dependentes e mimados. Concluiu que isso era resultado de uma combinação de limites sólidos, crianças envolvidas com a rotina da casa e uma dinâmica em que a maternidade não se torna o trabalho número 1 na vida dos pais. “A função deles é ajudar a controlar os impulsos dos filhos e ensiná-los a regular suas emoções”, arremata a psicóloga Ceres Araújo. O jeito de chegar lá cabe a cada um. Quanto aos palpiteiros de plantão, vale o mandamento: não julgarás.
Com reportagem de Nathalie Hanna Alpaca
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2022, edição nº 2775