Embalado pelo discurso de seu ídolo político, Donald Trump, que aponta, sem provas, a existência de fraudes nas eleições americanas, da qual saiu derrotado, Jair Bolsonaro voltou a pôr em xeque o sistema eleitoral brasileiro e a agitar uma desbotada bandeira: a defesa do voto impresso. O disparate ganhou eco após o ataque hacker ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele paralisou os trabalhos na Corte e serviu como argumento para a militância bolsonarista vociferar contra a urna eletrônica, que, dizem, também poderia ter a sua segurança violada. O presidente falou sobre a antiga proposta duas vezes em menos de uma semana — e às vésperas do pleito municipal. Em um evento na terça-feira 10, afirmou que a votação “é passível de fraude, sim”. Como de costume, não apresentou nenhuma evidência. Antes, em uma live no dia 5, disse que trabalhará para que o Congresso aprove um “sistema eleitoral confiável em 2022” e anunciou apoio a uma Proposta de Emenda à Constituição da deputada Bia Kicis (PSL-DF), outra política que não tem muito compromisso com a verdade dos fatos, tanto assim que é investigada no inquérito das fake news do STF. A tal PEC prevê que uma cédula física seja expedida, conferida pelo eleitor e depositada em urnas indevassáveis “para fins de auditoria”.
Como toda boa teoria conspiratória, a da fragilidade das urnas eletrônicas ganhou terreno apoiada em meias-verdades ou lorotas absolutas. Um dos argumentos mais pueris diz que, se o sistema fosse assim tão bom, não seria adotado apenas no Brasil. Na verdade, ao todo, 23 países usam tecnologia parecida nas eleições gerais e outros dezoito, entre eles Canadá, Índia e França, a utilizam em pleitos regionais. Desde que foi implementado por aqui, em 1996, nunca houve um caso concreto de fraude. A despeito do que o presidente e seus seguidores radicais pregam, o sistema brasileiro permite mais de dez formas de auditoria — inclusive uma planilha com cada um dos números de candidatos digitados pelo eleitor em cada um dos equipamentos. A ordem é aleatória, para não identificar o voto de ninguém. Tudo fica devidamente disponível aos partidos, para a realização de uma conferência própria, se desejarem.
Ainda assim, na tramitação da minirreforma eleitoral de 2015, a obrigação de imprimir o voto foi incluída por uma emenda do próprio Bolsonaro, então deputado. Mas, em setembro deste ano, o STF decidiu que a versão impressa violava a garantia constitucional do segredo do voto. Um dia após Bolsonaro recorrer a esse terraplanismo político, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, não só lembrou dos altos custos para implantar a medida (2,5 bilhões de reais), como qualificou a ideia de “retrocesso”.
A urna eletrônica é projetada para ser um dispositivo isolado, sem conexão com a internet, Bluetooth ou qualquer tipo de rede, inibindo ataques externos. Além disso, existem trinta camadas de segurança que protegem os sistemas de tentativas de invasão. Ainda assim o TSE realiza testes públicos de segurança, em que grupos tentam violar a urna — já foram mais de cinquenta ataques e quase nenhuma vulnerabilidade detectada. Nas raríssimas vezes em que isso ocorre, o tribunal faz a correção e convida o hacker a tentar engambelar o mecanismo novamente. “As críticas são afastadas da realidade”, afirma o secretário de Tecnologia da Informação do TSE, Giuseppe Janino.
Há quem aponte a existência de outros motivos por trás da insistência do presidente no assunto — e qualquer semelhança com Trump não é coincidência. “Ele se prepara para a possibilidade de não ganhar as eleições em 2022, tumultuando a vitória de quem quer que seja”, acredita o cientista político Eurico Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Sem nenhuma prova, Bolsonaro já havia lançado dúvidas sobre a lisura da eleição de 2018. Dizia ter tido votos suficientes para ganhar em primeiro turno. Passaram-se dois anos desde a sua vitória, sem que o presidente tenha levado às autoridades qualquer elemento de que a votação fora fraudulenta.
Existe também a suspeita de que seja apenas a velha tática diversionista de criar polêmicas aleatórias sempre que se vê às voltas com problemas reais envolvendo o governo (na economia, na saúde, no meio ambiente ou na política externa) ou a sua família — o filho Flávio Bolsonaro acabou de ser denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro no caso da “rachadinha”. “Bolsonaro procura agradar a seus setores mais próximos, ao mesmo tempo que desvia a discussão do que está acontecendo no país, sobretudo da crise econômica, do desemprego e da Covid-19”, afirma o cientista político Paulo Baía, professor da UFRJ.
Mesmo sem evidência alguma de fraude, no entanto, Bolsonaro mobiliza a sua militância. No Facebook, as interações em postagens com a expressão “voto impresso” eram inexpressivas em outubro. Foi só o presidente levantar a questão para, nos dias 5 e 6, haver mais de 570 000 interações sobre o assunto em páginas, grupos públicos, robôs e perfis verificados. Um dos fomentadores da onda é o filho do presidente Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ). Em 2018, ele disse que o TSE entregou códigos de segurança dos equipamentos à Venezuela e negou acesso a auditores brasileiros. Foi desmentido pelo tribunal e até por Hamilton Mourão, à época vice na chapa de Bolsonaro. Apesar da cortina de fumaça criada pelo presidente, ao que tudo indica, como sempre, a urna eletrônica passará em mais um teste no domingo 15, quando 148 milhões de eleitores estarão aptos a votar. Restará a Bolsonaro se conformar com os resultados, sejam eles quais forem.
Publicado em VEJA de 18 de novembro de 2020, edição nº 2713