Alvo de protestos de torcidas organizadas e grupos de torcedores ditos antifascistas no domingo passado e no próximo, o presidente Jair Bolsonaro não incomoda as organizadas somente pelos recentes flertes com uma ruptura institucional, mote das manifestações. Outra frente de descontentamento dos grupos com o governo remete a novembro de 2018, quando Bolsonaro, ainda antes da posse, decidiu extinguir o Ministério do Esporte, canal de interlocução das torcidas organizadas com Brasília. A pasta foi reduzida a uma Secretaria Especial, incorporada ao Ministério da Cidadania, hoje comandado por Onyx Lorenzoni.
“Desde o desmonte do ministério, que cerceou o diálogo das torcidas com o poder público, temos conversado no sentido de contestar as atitudes do atual presidente de banir ou não permitir o processo de debate que envolve as torcidas organizadas, sobretudo em relação às contradições do Estatuto do Torcedor”, diz Alex Sandro Gomes, conhecido como Minduin, ligado à corintiana Gaviões da Fiel e presidente da Associação Nacional de Torcidas Organizadas (Anatorg), que reúne cerca de 120 afiliadas em 19 estados e o Distrito Federal. De acordo com ele, houve atos em catorze estados no domingo passado.
Em um ano e meio de governo Bolsonaro, a Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania já teve três ocupantes. Depois das demissões dos ex-secretários Marco Aurélio Vieira e Décio Brasil, ambos generais, o atual titular do cargo é Marcelo Reis Magalhães, padrinho de casamento do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho mais velho do presidente.
O líder da associação de torcidas também critica a atuação de parlamentares bolsonaristas no Congresso, que, de acordo com ele, trabalharam contra projetos de interesse das organizadas, como a criação do Dia Nacional das Torcidas Organizadas, de autoria do deputado federal Nilto Tatto (PT-SP). “É um presidente que só usa o futebol para se promover, ele explora a imagem de vários clubes”, critica Gomes, que se candidatou a deputado estadual pelo PT em 2018 e assessorou o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, enquanto ele foi deputado federal pelo partido. Na contramão da recomendação de líderes de PSB, PSD, PDT, Rede e Cidadania, todos da oposição, o PT estimulou atos nas ruas contra o governo e afirmou que eles ‘são o fato novo na luta pela democracia”.
No início de abril, ainda antes da escalada da pandemia de coronavírus, torcidas vinculadas à Anatorg e representantes de grupos de torcedores antifascistas se reuniram em Porto Alegre e decidiram que passariam a organizar ações conjuntas para se contrapor ao presidente e à militância bolsonarista nas ruas. O estopim para o início das mobilizações veio no início de maio, com agressões a profissionais de saúde por militantes em Brasília.
Em São Paulo, parte do movimento nasceu em reuniões de membros da Gaviões da Fiel para entrega de cestas básicas e marmitex a moradores de periferia paulistana. Teólogo e estudante de História, Danilo Pássaro, 27 anos, é associado à organizada e lidera o grupo Somos Democracia, que foi à Avenida Paulista no início de maio para contrapor uma manifestação bolsonarista e voltou às ruas no último domingo. “Sentimos necessidade de entrar na disputa de narrativas, só eles estavam nas ruas, que são um importante termômetro. O isolamento é importante, mas existe o risco de golpe, então defender a democracia é serviço essencial”, diz Pássaro, que é filiado ao PSOL e avalia se candidatar a vereador na próxima eleição municipal.
Além do flerte do presidente com o autoritarismo e as agressões por bolsonaristas nas ruas, os torcedores que têm desrespeitado o isolamento social para protestar nas ruas também citam como motivo para as manifestações, paradoxalmente, a postura de Bolsonaro diante da pandemia. Os torcedores organizados, boa parte moradores de periferia, já têm saído às ruas para trabalhar e não veem problemas em fazer o mesmo para protestar. Entre os associados da Gaviões da Fiel, treze já morreram de Covid-19. “São pessoas que fazem parte de um grupo organizado, que já têm reconhecidas táticas de enfrentamento ao oponente em espaços públicos, especificamente no campo futebolístico. Sem dúvida, isso tem contribuído decisivamente para que se mobilizem”, diz o cientista político Túlio Velho Barreto, da Fundação Joaquim Nabuco, estudioso da sociologia do futebol.
A articulação dos torcedores rivais paulistas foi feita no boca-a-boca via WhatsApp e incluiu ainda grupos palmeirenses, como o Porcomunas, e membros das torcidas Jovem, do Santos, e Independente, do São Paulo. Apesar das mobilizações, as cúpulas das torcidas organizadas têm se mantido neutras em relação aos atos. “Uma identificação poderia fechar portas, por conta da rivalidade”, diz Danilo Pássaro. Os protestos de torcedores continuarão em São Paulo no próximo domingo, 7, novamente na Avenida Paulista, e terão a adesão dos movimentos sociais da Frente Povo Sem Medo, coordenada pelo ex-presidenciável Guilherme Boulos (PSOL).
No Rio de Janeiro, também em grupos de WhatsApp, o diálogo tem sido entre torcedores de coletivos antifascistas. O jornalista Luan Toja, 30 anos, da Botafogo Antifascista, afirma que o grupo havia recusado convites a protestos por causa da pandemia, mas reavaliou a posição diante das primeiras manifestações. “Se não fossemos para rua combater as manifestações da extrema direita, estaríamos naturalizando esse tipo de manifestação”, diz Toja. Torcedores de Flamengo, Fluminense, Botafogo e Vasco participarão de um ato antirracista e em defesa da democracia no domingo, em frente ao Monumento a Zumbi dos Palmares, no Centro da cidade.