Bolsa Família tem queda em desligamentos, e governo prepara porta de saída
Número de pessoas que deixaram o programa de forma espontânea tem ritmo menor em relação aos outros anos; programa buscará ajudar jovens a conseguir emprego
Ex-flanelinha nas ruas do centro de Belo Horizonte, Samuel Rodrigues conseguia manter o sustento do filho pequeno graças aos 50 reais mensais do Bolsa Família recebidos por meio da mulher, a ex-doméstica Ana Cristina Rosa. “Usava o dinheiro para comprar um biscoito, um iogurte, uma fruta para o meu garoto”, diz. O período de maior sufoco durou dois anos. Com um empréstimo, comprou em 2012 um aspirador de pó e começou a oferecer o serviço de lavagem de carros. O negócio vingou. Dois anos depois, ele se desfez voluntariamente do Bolsa Família e criou a empresa Samuca Lava Car, que hoje tem uma cartela de quarenta clientes fixos nos “condomínios mais chiques de BH”, como faz questão de frisar.
Histórias parecidas estão se tornando mais raras no Bolsa Família. Devido ao marasmo econômico, os desligamentos voluntários, que ocorrem quando o beneficiário entrega por livre e espontânea vontade a sua carteirinha por ter melhorado de renda, encontram-se em um ritmo bem mais lento. Entre janeiro e maio, 11 300 pessoas haviam deixado o programa de forma espontânea. Se o ritmo verificado até aqui persistir nos próximos meses, será o pior indicador do tipo registrado desde 2015.
Com o objetivo de mudar esse cenário, o governo Bolsonaro anunciou no último dia 30 um convênio de 2,3 bilhões de reais com a Confederação Nacional da Indústria (CNI) para oferecer, em quatro anos, cursos profissionalizantes a 800 000 jovens. Os inscritos no Bolsa Família terão prioridade. Nos próximos quinze dias, parcerias semelhantes devem ser anunciadas com os setores de comércio e de serviços. O objetivo do ministro da Cidadania, Osmar Terra, é alcançar 4,6 milhões dos chamados “nem-nem” — jovens que não estudam nem trabalham. “Eles podem vir a se tornar o exército oficial do crime organizado”, afirma.
Criado em 2003, o Bolsa Família chegou ao auge de cadastrados em 2014 e, desde então, continua praticamente no mesmo patamar, com uma base de 13,8 milhões de famílias beneficiárias recebendo um valor médio de 188 reais. “É o mais eficiente programa de transferência de renda”, entende o economista Marcelo Neri, diretor do núcleo social da FGV e ex-presidente do Ipea. “Ele tem um efeito de longo prazo no desenvolvimento humano e, em curto prazo, faz a economia girar.”
No passado, o então deputado Jair Bolsonaro foi um crítico feroz do Bolsa Família, dizendo que o programa era uma espécie de moeda “para comprar votos no Nordeste”. Ao assumir o governo, tratou de investir no negócio. A primeira novidade envolveu o pagamento de décimo terceiro a todos os beneficiários. Ele será efetuado automaticamente em dezembro. Para os especialistas, a ideia é acertada. Há em curso um aumento da extrema pobreza provocada pela crise. Ao mesmo tempo, a ideia é inédita, já que os reajustes costumam ser anunciados em anos de eleição — e não depois dela. Parte do dinheiro do décimo terceiro virá do pente-fino iniciado no período Temer e intensificado pelo governo Bolsonaro, que encontrou mais de 1 milhão de cadastrados recebendo o benefício de forma irregular — entre eles empresários, servidores públicos, mortos e até doadores de campanha. A ideia do décimo terceiro veio do vice, Hamilton Mourão, e já foi proposta em campanhas eleitorais por Marina Silva e José Serra.
Encontrar uma porta de saída para o programa continua representando o principal problema. Segundo o IBGE, o índice de desemprego recuou de 12,7% para 12% do primeiro para o segundo trimestre. Mas ainda restam 12,8 milhões de pessoas à procura de uma vaga. Enquanto esse número não baixar de forma mais rápida, a curva de desligamentos do Bolsa Família vai seguir em ritmo bem reduzido.
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646