Dias antes, já era possível ouvir o rufar dos tambores anunciando uma batalha campal em torno do projeto de lei 2 630/20, conhecido como PL das Fake News, cujo ponto central é a regulação da atuação das plataformas de internet. E o confronto, de fato, aconteceu. De um lado, o governo Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mobilizaram suas tropas para tentar aprovar a proposta. Do outro, as grandes companhias de tecnologia partiram para uma ofensiva jamais vista contra uma iniciativa do poder público brasileiro, no que foram acompanhadas por um bom número de deputados. A briga arrastou Ministério Público, Judiciário e sociedade civil e terminou com o adiamento da votação prevista para terça 2. O recuo representou uma vitória momentânea importante das forças contrárias à proposta, mas o desfecho da guerra ainda está muito longe do fim.
O primeiro ato da batalha ocorreu na semana anterior, quando deputados aprovaram a urgência para o texto (que estava parado havia quase três anos), em parte embalados pelo quebra-quebra golpista de 8 de janeiro e os ataques em escolas. O gesto incomodou as big techs. Começaram a surgir suspeitas de que elas estariam favorecendo na rede a circulação de pontos de vista contrários ao PL e limitando a dos argumentos em defesa do projeto. Plataformas como TikTok, Twitter e Meta (Facebook, WhatsApp e Instagram) fizeram campanha contra a regulação. Mas foi o Google, que concentra 90% das buscas na internet, quem mais provocou barulho. Primeiro, lançou campanha publicitária contra o PL. Depois, publicou textos (com link em destaque no site) dizendo que o projeto “traz sérias ameaças à liberdade de expressão” e “coloca em risco o acesso e a distribuição gratuita de conteúdo na internet” —afirmações contestáveis, mas que serviram para mobilizar os contrários.
A reação foi imediata. O ministro da Justiça, Flávio Dino, determinou a apuração de práticas abusivas com base na iniciativa do Google e na suspeita de que o Twitter estaria derrubando perfis que defendiam a aprovação da lei. A ação do Google foi considerada “propaganda enganosa” pelo governo, que ordenou a retirada do link sob ameaça de multa de 1 milhão de reais por hora — a empresa acabou cedendo. O Ministério Público Federal questionou se a companhia favoreceu publicações contra o projeto. O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, intimou os CEOs de Google, Meta e Spotify no país para depor à PF sobre suspeitas de “abuso de poder econômico” e “contribuição com a desinformação praticada por milícias digitais”.
Principal artífice da ressurreição do projeto de lei, o presidente da Câmara foi quem mais ficou incomodado. Segundo ele, deputados favoráveis ao projeto, parentes e assessores foram alvos de ameaças “virtuais” e “pessoais “. Na sessão em que adiou a votação, ele tentou descrever o que foi o período desde a aprovação da urgência. “Nós demos oito dias para que as big techs fizessem o horror que fizeram com a Câmara”, discursou. Ele anunciou que pediu ao setor jurídico da Casa que estude medidas judiciais contra as empresas por causa da campanha contra a votação do PL. “A pressão foi horrível, desumana e mentirosa”, disse.
Quem também saiu chamuscado do episódio foi o relator do PL, Orlando Silva (PCdoB-SP). Mesmo com o apoio do governo e de Lira, e depois de várias reuniões com líderes da Casa, ele não conseguiu um texto que pudesse ser votado sem risco de derrota, apesar de ter feito concessões, como retirar a criação de uma autoridade pública para fiscalizar as empresas. Chegou no dia da votação com um projeto que tinha mais de noventa emendas e pediu o adiamento porque não havia tido “tempo útil para examinar todas as sugestões”. Mas também apontou o dedo para a pressão. “As big techs fizeram um tipo de campanha que extrapolou a pressão legítima e democrática. O que fizeram foi abuso de poder econômico, ainda mais quando há certas empresas que detêm tanto monopólio do mercado”, disse.
A bem da verdade, quando os gigantes de tecnologia pegaram em armas contra o projeto, já havia na Câmara um número considerável de soldados na sua trincheira. Parlamentares de direita vinham fazendo uma forte campanha nas redes para barrar o que chamam equivocadamente de “PL da Censura”. O principal ponto é o artigo 11, que determina que os provedores devem “atuar diligentemente para prevenir e mitigar práticas ilícitas no âmbito de seus serviços”, incluindo conteúdos contra a democracia. O temor desses congressistas é que sejam impedidos de tratar de “assuntos polêmicos” — o que não é verdade, já que o projeto prevê a extensão da imunidade parlamentar para as redes sociais. “O PL está eivado de propostas que não são claras o suficiente”, justifica o deputado Marco Feliciano (PL-SP), representante da bancada evangélica, que ficou contra o texto. Alguns apelaram até para fake news, como Deltan Dallagnol (Podemos-PR), que espalhou que trechos da Bíblia poderiam ser censurados. A oposição viu fragilidade do governo no adiamento como uma vitória. “Mostrou que o governo não tem votos suficientes”, diz o líder da oposição na Câmara, Carlos Jordy (PL-RJ).
Enquanto muitos parlamentares lutam para seguir surfando na onda de uma terra digital sem lei, as big techs se preocupam com a possibilidade de um tsunami sobre seu modelo de atuação. “O argumento de que o projeto de lei ameaça a liberdade de expressão é válido, mas, por trás disso, o que elas estão defendendo é seu modelo econômico”, avalia Carlos Affonso, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Os pontos que mais as companhias combatem são exatamente os que preveem a moderação ativa de conteúdo e a responsabilização pelo que é veiculado, pontos com potencial de gerar grandes custos às operações. Elas também se insurgem contra a obrigatoriedade de remunerar empresas de jornalismo e todos os titulares de obras que circulam nas redes. “Reforçamos o apoio ao projeto de lei que inclui a remuneração a todo conteúdo protegido pela Lei do Direito Autoral, incluindo o jornalístico, o musical e o audiovisual”, disse o músico Nando Reis, que foi à Câmara, na terça 2, apoiar o projeto ao lado de outros artistas.
A preocupação em aumentar a responsabilização das empresas é mais do que justificada. As redes sociais se tornaram porto seguro para todo tipo de crime, da venda de cartões de crédito clonados a conspirações golpistas e discursos de ódio. As companhias sempre mostraram pouca ou nenhuma disposição para colaborar com o poder público. O último mau exemplo veio do Telegram, retirado do ar em abril pela Justiça por se recusar a fornecer dados de grupos neonazistas à PF, em investigação sobre ataques que deixaram quatro mortos em escolas de Aracruz (ES). O russo Pavel Durov, CEO da empresa, deu uma desculpa esfarrapada (“o tribunal solicitou dados que são tecnologicamente impossíveis de obter”) e deixou clara a práxis da empresa: “Não importa o custo, defenderemos nossos usuários no Brasil e seu direito à comunicação privada”. O Telegram já foi retirado do ar em 2022 por não atender à Justiça e foi a última plataforma a firmar acordo para combater a desinformação eleitoral. Mas ele não está só. Facebook, Instagram e TikTok também não responderam a pedidos do MPF sobre moderação de conteúdos em português na eleição. Em abril, o Twitter causou desconforto ao defender em reunião com o governo que perfis que exaltam autores de massacres em escolas não ferem seus termos de uso.
O adiamento da votação do PL 2 630/20 dá às big techs mais prazo para articularem contra a aprovação, já que o texto deve demorar ao menos mais duas semanas para ser pautado. Por outro lado, também dá tempo aos defensores da proposta para aperfeiçoar o texto, arrebanhar mais apoio político e reduzir as arestas. O confronto será longo. Se a Câmara aprovar, a praça de guerra vai se mudar para o Senado, que terá de analisar o PL novamente já que o texto foi alterado. Mas há um fator, lembrado por Lira, que pode mudar o rumo das coisas: dois casos que tramitam no STF podem invalidar o artigo 19 do Marco Civil da Internet, exatamente o trecho que exime as empresas de responsabilidade pelas publicações dos usuários. A depender da votação (que não tem data), o resultado pode estabelecer um precedente legal contra as big techs, que continuará valendo ainda que o projeto de lei seja rejeitado.
Embora seja inconteste o protagonismo que a internet ganhou na vida pública e privada, é preciso fixar regras que deixem claras as responsabilidades de cada um. E isso deve ser feito com firmeza, serenidade, inteligência e espírito público, não com proselitismo barato ou com o uso distorcido de princípios caros, como a liberdade de expressão, para esconder interesses inconfessáveis. Uma frase comumente atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo, o pai da tragédia, diz que, “em uma guerra, a primeira vítima é a verdade”. É tudo o que não pode acontecer no embate em curso.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840