Há 44 anos, em 28 de agosto de 1979, promulgava-se a Lei da Anistia, fundamental para o fim da ditadura militar brasileira e o início da redemocratização. A data será lembrada pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, que participará, até 1° de setembro, da Semana da Democracia e Anistia, com uma série de iniciativas que tem como objetivo propiciar o debate e a reflexão sobre o período de exceção e relembrar a trajetória dos perseguidos pelo regime. Meta semelhante também foi compartilhada pelo primeiro esforço de escavação de um dos maiores marcos do regime militar, o DOI-Codi, que aconteceu na primeira quinzena deste mês.
O prédio do Doi-Codi, localizado na Rua Tutoia, 921, em São Paulo, foi um dos lugares mais simbólicos (e tenebrosos) da ditadura militar brasileira. O departamento, conhecido como a central de tortura e assassinato dos adversários do regime, recebeu cerca de 7 mil presos, dos quais se estima que mais de 50 foram assassinados entre 1969 e 1975, incluindo o jornalista Vladimir Herzog. O prédio era uma espécie de quintal do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ídolo do ex-presidente Jair Bolsonaro e, reconhecidamente, um dos grandes torturadores do regime militar. Apesar de sua relevância histórica, a construção nunca tinha sido estudada a fundo – até que as recentes escavações trouxessem à tona a memória desse período obscuro da história brasileira.
O local passou por uma varredura completa e foram encontrados vestígios de material biológico, que pode ser sangue, e itens do cotidiano, como botões, solas de sapato e tinta para carimbo. Em um banheiro do primeiro andar achou-se, sob camadas de tinta e cimento, inscrições de um calendário que, de acordo com as datas, pode ser de 1970 ou de 1981. A equipe acredita que a marcação tenha sido feita por uma presa mulher. Além disso, curiosamente, um pedaço de cerâmica indígena pré-colonial também estava entre os achados. Todos os itens encontrados estão no Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp, onde serão processados e estudados. O grupo usará como apoio de pesquisa os testemunhos de presos políticos que passaram pelo local e outras fontes históricas do período.
“É preciso lembrar que a ditadura não é uma narrativa”, diz Andrés Zarankin, professor do Departamento de Arqueologia e Antropologia da UFMG. “As marcas das torturas, os depoimentos dos sobreviventes são provas, que em outros países se usam para processar os responsáveis. Aqui, já que existe a anistia, tentamos recuperar esses elementos para que sirvam para enxergar criticamente esse momento.”
Durante as escavações, centenas de pessoas puderam acompanhar de perto o trabalho dos pesquisadores. O grupo recebeu, inclusive, ex-presos políticos que passaram pelo local durante o regime militar, a grande maioria não pisava ali havia décadas. A memória dos presos e torturados recuperam minúcias, que se tornam visíveis nos vestígios arqueológicos. Dessa forma, a empreitada pode ajudar a ativar memórias dos detalhes mais importantes do funcionamento do DOI-Codi durante o regime, que podem ter sido apagadas pelo tempo ou pelo trauma.
“A gente não teve justiça de transição da ditadura, algo que transformou e fez a sociedade se refazer”, diz Claudia Plens, professora do Departamento de Arqueologia da Unifesp. “Isso deixa a estrutura social muito danificada. As pessoas sofreram e acabaram ficando quietas, mas, assim que a gente entrou aqui, muitos foram motivados a voltar a falar.”
A expectativa é que a recuperação dessa memória possa fortalecer os argumentos que pedem, desde 2001, que o edifício seja transformado em um memorial. Em junho de 2021, o Ministério Público de São Paulo entrou com uma ação judicial para implementar no local um espaço de memória dedicado à reflexão sobre a ditadura.
A ação, entre o MP-SP e a Fazenda Pública do Estado de São Paulo, ainda está em andamento. Enquanto uma decisão nesse sentido não sai, o grupo reúne informações e materiais para a criação de um memorial virtual. Um filme sobre as escavações e a memória histórica do DOI-Codi também está sendo produzido pela cineasta Carla Gallo.
“A gente está falando de uma ditadura que aconteceu há algumas décadas, mas a gente ainda vive em um país muito violento”, diz Claudia Plens. “Tocar nessa ferida do passado é lembrar, em certa medida, o que continua acontecendo hoje.” “Essa tradição de sempre virar a página sem apurar nos faz ter essa normalidade de aceitar a violência como parte da nossa estrutura social, a ponto de a gente às vezes nem identificar que ela é um um fator estruturante”, completa Deborah Neves, coordenadora das escavações no prédio.