Na reta final do segundo turno, Lula divulgou mensagens numa rede social defendendo a eleição de catorze candidatos a prefeito. Em vídeos curtos, o presidente apresentava o concorrente, pedia um voto de confiança no afilhado político e aproveitava a oportunidade para falar de realizações de seu governo. Foi uma tentativa de remediar a derrota da esquerda no primeiro turno, mostrar poder como cabo eleitoral e rebater a crítica de que se distanciou da disputa municipal por medo de ser associado a derrotas. A ofensiva não deu certo. Apenas três dos candidatos venceram seus pleitos, com destaque para Evandro Leitão, que ganhou em Fortaleza e garantiu ao PT a única prefeitura de capital na votação deste ano. A maior derrota foi a de Guilherme Boulos (PSOL), cuja candidatura era a principal aposta de Lula por ser considerada estratégica para a sucessão presidencial de 2026. A esperada transferência de votos não ocorreu em São Paulo, em particular, e no Brasil, de uma forma geral. O presidente perdeu um tanto do brilho de outrora. Já seu partido, atordoado com o fracasso nas urnas, lançou-se numa caça às bruxas e mergulhou de vez numa disputa interna de poder.
Não será fácil superar a dor da derrota. Apesar de ter voltado à Presidência, o PT venceu em apenas 252 de 5 570 municípios, ficando na nona colocação entre os partidos que mais elegeram prefeitos. No estado de São Paulo, teve sucesso em apenas quatro das mais de 600 cidades e não conseguiu reeleger em Diadema o prefeito José de Filippi, ex-tesoureiro de campanhas de Lula e Dilma Rousseff. Um sobrevoo sobre desempenhos anteriores dá uma noção do tamanho do revés. Na eleição municipal de 2004, disputada no primeiro mandato de Lula, o partido mais do que dobrou o número de prefeituras e venceu em nove capitais. Em 2012, na gestão inicial de Dilma, ganhou em 630 cidades, incluindo São Paulo. Como de costume, Lula se exime de responsabilidade pelo resultado negativo de 2024 e alega que a falha é principalmente do PT, que não soube aproveitar a volta ao governo federal para recuperar terreno. Essa tese, conveniente ao mandatário, é contestada até por estrelas petistas. Reservadamente, muitas delas dizem que o presidente vive encastelado e só conversa com meia dúzia de ministros, os quais não têm coragem ou estofo político para criticá-lo ou defender mudanças de rota. Lula, segundo esse grupo, teria perdido o pulso das ruas. É por isso que expoentes da esquerda recomendaram ao presidente, antes mesmo da eleição, que passasse a ouvir antigos aliados e ampliasse seu leque de interlocutores, estendendo-o a líderes de centro.
Alguns sinais da fissura interna já estão expostos. No dia seguinte ao segundo turno, Lula recebeu no Palácio da Alvorada o ministro Alexandre Padilha, petista responsável pela articulação política, e a presidente do PT, a deputada Gleisi Hoffmann. Após a reunião, Padilha admitiu que o partido não se recuperou como se esperava. “O PT é o campeão nacional das eleições presidenciais, mas na minha avaliação não saiu ainda do Z4 (zona de rebaixamento) que entrou em 2016 nas eleições municipais”, afirmou. A declaração pegou de surpresa Gleisi, que reagiu numa rede social: “Pagamos o preço, como partido, de estar num governo de ampla coalizão. E estamos numa ofensiva da extrema direita. Ofender o partido, fazendo graça, e diminuir nosso esforço nacional não contribui para alterar essa correlação de forças”. Mais tarde, na reunião da Executiva Nacional do PT, Padilha voltou a ser alvo de críticas, assim como ministros considerados bajuladores e incapazes de aproximar o presidente da realidade.
O entrevero é bem mais amplo do que parece. Padilha faz parte de uma ala do PT que cogitou o encurtamento do mandato de Gleisi à frente do partido, com vigência até meados do ano que vem. A ideia foi apresentada a Lula, que gostou do que ouviu. A deputada, no entanto, rechaçou a iniciativa. Se depender do presidente e do ministro, o próximo comandante do PT será o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, considerado mais conciliador e menos sectário do que Gleisi. Já a deputada prefere o líder do governo na Câmara, José Guimarães (CE), que no ano passado sonhou em substituir Padilha no ministério com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O problema do PT é que o seu desafio transcende à escolha de um nome para chefiá-lo. O partido admite que precisa mudar a linguagem e a estratégia de comunicação para tentar competir minimamente com os adversários nas redes sociais, onde toma uma surra. De acordo com alguns de seus quadros mais importantes, o PT também precisa se reorganizar, renovar quadros e bandeiras, voltar a ocupar espaços onde o debate político é travado e redefinir prioridades.
Internamente, há o entendimento de que o partido lutou pela própria sobrevivência nos últimos dez anos, quando enfrentou as consequências da Operação Lava-Jato, da recessão histórica legada por Dilma Rousseff e do impeachment da então presidente. Há também o reconhecimento ao papel combativo desempenhado por Gleisi nessa fase de resistência — fase que agora teria de ser deixada para trás. O momento seria de refundação. De apostar menos em pautas identitárias e mais em propostas de interesse da população. De retomar o diálogo com trabalhadores, igrejas e jovens. De atualizar a agenda. “A esquerda precisa se reformar, porque o mundo é outro, o Brasil é outro”, resumiu o ex-ministro José Dirceu numa entrevista recente (veja abaixo). “O próprio exercício do mandato vai exigindo mudanças, revisões, e o presidente tem liderança e capacidade para isso”, acrescentou. Lula já entendeu, por exemplo, que nem todo trabalhador quer ter carteira assinada, mas ainda não conseguiu superar certos dilemas de sua gestão. Por exemplo: ele tenta se cacifar como um líder global no debate sobre meio ambiente, mas seu governo não trata a área como prioridade internamente. A dubiedade se estende a outros assuntos, como defesa da democracia e responsabilidade fiscal.
Apesar de o resultado da votação municipal não ter necessariamente relação direta com o resultado da eleição geral, a derrota da esquerda e o fortalecimento de partidos da direita e da centro-direita soaram como alertas a uma eventual candidatura à reeleição de Lula. Nomes até pouco tempo atrás apenas cogitados como possíveis adversários do presidente anunciaram abertamente a intenção de disputar o cargo, como o governador Ronaldo Caiado, ou ganharam mais tração nos bastidores, como o governador Tarcísio Gomes de Freitas (veja a reportagem na pág. 38). No Congresso, a possibilidade de anistia a Jair Bolsonaro voltou com força à mesa de negociação. O futuro páreo presidencial, portanto, poderá ser bem mais movimentado do que se desenhava. Lula sabe disso e tem sido aconselhado a reagir. Duas sugestões antigas voltaram a ser reforçadas nas conversas com o presidente. Uma delas é realizar uma reforma ministerial a fim de dar mais poder aos partidos do Centrão, numa tentativa de amarrá-los ao projeto de reeleição. A outra é finalmente lançar um pacote consistente de corte de gastos, como forma de acalmar o mercado, que anda enamorado por Tarcísio de Freitas.
Em 2026, quando será realizada a próxima sucessão presidencial, Lula terá 81 anos e poderá tentar um novo mandato. A tendência, dizem seus aliados, é ele concorrer. Primeiro, porque monopolizou a candidatura presidencial petista desde a redemocratização — disputou seis das nove eleições, e em duas ocasiões só ficou de fora porque sua participação estava proibida. Segundo, porque a esquerda e o PT, que enfrentam um momento de dificuldade, tornaram-se mais dependentes da candidatura do presidente. Sem ele nas urnas, os esquerdistas temem uma nova surra nas votações para Câmara, Senado, governos e legislativos estaduais. Em sua terceira passagem pelo Planalto, Lula não tem o brilho de outrora, mas — até por ter abafado o crescimento de novas lideranças — continua sendo o astro-rei de seu campo político.
A volta do oráculo petista
No momento em que o PT retoma o discurso de renovação partidária e acena ao centro como estratégia de sobrevivência depois do fracasso nas eleições municipais, um dos mais notórios expoentes da velha guarda do partido conseguiu a maior vitória judicial desde que caiu em desgraça após ser preso e sentenciado a mais de vinte anos de cadeia. Em decisão individual, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), anulou todas as condenações do ex-ministro José Dirceu derivadas da Lava-Jato. Notório crítico da operação que atormentou a classe política, o magistrado considerou que a condução dos processos que acusavam o petista de operar um esquema de desvio de dinheiro dos cofres da Petrobras tinha objetivos políticos. “O ex-juiz nutria um projeto de poder próprio, baseado em uma plataforma política que se dizia alternativa aos partidos tradicionais”, escreveu o ministro, se referindo ao ex-juiz e hoje senador Sergio Moro, que na esteira do caso virou ministro da Justiça de Jair Bolsonaro e depois tentou disputar a Presidência da República.
Dirceu já foi — e é até hoje para alguns — uma espécie de oráculo do PT. Um dos fundadores do partido, o ex-ministro foi condenado, em 2012, a sete anos de prisão por envolvimento no escândalo do mensalão, esquema de desvios de dinheiro público descoberto no primeiro governo de Lula. Ele cumpriu a pena, perdeu os direitos políticos e se afastou da vida partidária. Em 2015, a Lava-Jato revelou a participação do petista também no escândalo da Petrobras, o que resultou nas condenações agora anuladas pelo STF. Gilmar Mendes considerou que a investigação não foi isenta e que o objetivo do juiz e dos procuradores da Lava-Jato seria atingir Lula, entre outros alvos. “Era necessário injetar na sociedade um sentimento de insatisfação com a classe política, associado a um desejo de mudança das instituições”, concluiu Mendes.
O ex-presidente Lula, como se sabe, foi condenado, ficou preso durante 580 dias e, em razão disso, impedido de disputar as eleições de 2018. Posteriormente, o processo dele também foi anulado pelo Supremo. Agora, com a invalidação das condenações, tema que ainda será analisado pelo plenário do STF, o ex-ministro da Casa Civil volta a ser considerado ficha limpa e fica apto a concorrer a cargos eletivos. Aos 78 anos, ele já manifestou intenção de retomar a carreira política, particularmente em disputar uma cadeira de deputado federal, cargo do qual foi cassado em 2005. Em sua última aparição pública, o petista participou da “Caminhada da Vitória”, evento promovido pela campanha de Guilherme Boulos em São Paulo. Será difícil para o PT falar em renovação.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917