Estava outro dia voltando de um jogo de futebol com amigos quando fomos parados por uma blitz. Com rispidez, os policiais nos mandaram sair do carro e colocar as mãos no capô. Tocamos juntos em uma orquestra de Niterói, na região metropolitana do Rio, e não é raro para a gente, de pele negra, passar por esse tipo de abordagem no meio da rua. Revistaram nossas mochilas, mas só o que encontraram foram páginas e páginas de partituras musicais, muita coisa clássica, que adoro. Achei que a situação havia se resolvido ali, até que um dos agentes chegou para mim dizendo: “Você está em débito com a Justiça”. Uma cena surreal. Aquela era a segunda vez, em pouco menos de dois anos, que me acusavam de um crime que nunca cometi — um assalto à mão armada ocorrido anos antes. E foi a segunda vez também que me levaram para a delegacia e me trataram como criminoso. Nem um telefonema me deixaram dar. Acabei sendo liberado após algumas horas de pesadelo, em que tive de me defender do que jamais fiz.
Fui forçado a remexer um passado recente que ainda me causa angústia e dor. Afinal, me conduziram à delegacia porque meu nome constava equivocadamente no sistema como bandido e não haviam apagado o erro — isso desde setembro de 2020. Foi a data em que o inferno começou: a polícia me prendeu depois que uma mulher que tinha sido assaltada apontou para uma foto minha em uma sessão de reconhecimento facial. Na ocasião, estava tocando com colegas músicos nas ruas do Centro, para fazer uma renda extra. Escureceu e decidimos ir para casa. No trajeto, veio a polícia, que nos interpelou de forma truculenta. Olharam o meu documento e avisaram que eu estava sendo procurado por participar do tal assalto, um tremendo susto. Tentei argumentar que era um engano, mas disseram que precisava ir à delegacia esclarecer a história. Estava ansioso para limpar meu nome e fui, na inocência. Chegando lá, tive de ficar pelado, fui revistado e imediatamente detido. Meus parentes só souberam do meu paradeiro porque o amigo que estava comigo correu para avisá-los.
E assim, sem nenhuma evidência nem prova, me mandaram para uma cela, onde passei cinco dias trancado com marginais. O medo era tanto que nem consigo lembrar os detalhes do que experimentei. Tive medo de enlouquecer, assombrado pela falta de perspectiva de sair e pela imensa injustiça. Só fui solto porque meu advogado obteve imagens de câmeras onde eu aparecia tocando meu violoncelo na exata hora do crime do qual me acusavam. Provada minha inocência, garantiram que iam dar baixa no meu processo, que meu nome ficaria limpo e não haveria mais nenhum transtorno. E eis que poucas semanas atrás me vi mais uma vez naquela delegacia, mais uma vez pagando por um crime que nunca cometeria. Deixei a prisão aliviado, mas tomado por sentimentos de mágoa e indignação. Mesmo em liberdade, meu nome estará eternamente marcado por algo que não fiz.
Com a memória desses dois episódios, vivo tenso ao sair de casa, olhando para a polícia, aquela que deveria me proteger, com uma natural desconfiança. Sei que muita gente como eu, negra, pobre, moradora de favela, se sente do mesmo jeito. Essas pessoas sabem que precisam tomar cuidado redobrado nas ruas. Desde pequeno, me acostumei a ser abordado junto com amigos só por estar correndo, brincando em grupo. Entrava no shopping e, com frequência, era perseguido por seguranças. A dor de passar por isso cotidianamente é intensa, não me abandona. Sei que o motor desses casos é o racismo, que se manifesta a toda hora das formas mais descabidas, como em minhas duas prisões. Cada um encontra sua trilha para caminhar no meio disso. No meu caso, driblo a brutalidade com muita música.
Luiz Carlos Justino em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros
Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807