Desde o último dia 18, quando agentes da Polícia Federal bateram às portas de endereços ligados ao deputado Carlos Jordy (PL-RJ), líder da oposição na Câmara, um grupo expressivo de parlamentares não tem dormido direito. O temor de que os desdobramentos das investigações sobre os distúrbios do 8 de Janeiro acabem levando a ações semelhantes contra outros políticos motivou ao menos duas reuniões recentes “de contingência” de deputados, além de uma carta assinada por oito senadores, recheada de críticas à operação. As movimentações têm um objetivo: pressionar os chefes do Legislativo, o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco, a patrocinar medidas para inibir iniciativas desse tipo contra congressistas e frear o que chamam de “perseguição”.
O pânico provocado pela sensação de que ninguém está livre de problemas aumentou ainda mais com o episódio da busca e apreensão realizada na quinta 25, tendo como um dos principais alvos o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), pré-candidato de oposição à prefeitura do Rio e ex-chefe da Abin no governo Bolsonaro, sob suspeita de ter criado na agência um esquema ilegal para espionar pessoas, sobretudo adversários políticos. O presidente nacional do PL, Valdemar Costa Neto, insurgiu-se imediatamente, afirmando que a operação representa uma “falta de autoridade do Congresso”. Pelas redes, cobrou que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), reaja às buscas realizadas no gabinete de Ramagem.
O principal temor dos bolsonaristas é que eles sejam alvos do mesmo tipo de investida. No caso das investigações ligadas ao 8 de Janeiro, até o episódio de Carlos Jordy, eram apenas três os parlamentares conhecidos investigados: André Fernandes (PL-CE), Clarissa Tércio (PP-PE) e Silvia Waiãpi (PL-AP) entraram na mira da Procuradoria-Geral da República logo após o quebra-quebra por terem feito publicações de apoio nas redes sociais. Jordy, no entanto, parecia não estar no radar. De repente, tornou-se o primeiro parlamentar federal alvo da Operação Lesa Pátria, da PF, que busca identificar executores, mentores, financiadores e incitadores do movimento.
A preocupação foi tamanha que, um dia após a operação, em pleno recesso, a claque bolsonarista convocou uma reunião virtual de emergência que contou com nomes expressivos da ala, como Carla Zambelli (SP), Nikolas Ferreira (MG) e Sóstenes Cavalcante (RJ), todos do PL. O intuito foi discutir uma “resposta à altura”. Ficou decidido que a principal investida será a defesa de uma Proposta de Emenda à Constituição, de autoria do deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), fixando que ações judiciais, mandados de busca e apreensão e investigações contra deputados e senadores só podem ocorrer mediante aprovação da Mesa Diretora das Casas.
O projeto está em fase de colheita de assinaturas — é necessário o apoio de 171 deputados. Caso siga adiante, precisará de 308 votos no plenário (três quintos da Câmara). “A PEC vai ter que recompor a autonomia do Poder Legislativo, que hoje está de cócoras a outro poder”, diz Sóstenes Cavalcante. Na quarta 24, houve uma segunda reunião, agora já em Brasília, em que o grupo decidiu que Jordy será mantido na liderança da oposição. No encontro, a turma indicou ainda que o “contra-ataque” deve incluir a busca de apoio de fora da oposição, até da esquerda. Sóstenes chegou a mencionar o bloqueio das contas bancárias do deputado Glauber Braga (PSOL-RJ) como sinal de que a “perseguição judicial” não seria exclusiva contra a oposição. Braga foi alvo de multa pela Justiça do Rio de Janeiro ao desrespeitar uma decisão que impedia a realização de um ato público no interior do estado.
Jordy aproveitou a movimentação para se defender. Disse, entre outras coisas, que foi alvo de uma “imagem adulterada” — os investigadores encontraram no celular do deputado uma conversa com Carlos Victor Carvalho, liderança da extrema direita, conhecido como “CVC”, acusado de financiar ônibus que transportaram manifestantes aos atos. Nas mensagens, CVC chama Jordy de “meu líder” e envia uma foto que seria dele em meio aos protestos. Ocorre que ela foi adulterada pelo próprio CVC, conforme relatou Jordy, que classificou o ato como “burrice”. A imagem, na verdade, era da posse de Jair Bolsonaro. Independentemente disso, a PF diz que a ação sobre Jordy foi baseada em uma série de elementos.
A tentativa de reação bolsonarista cria mais um componente de tensão na volta do Legislativo, em 5 de fevereiro. Essa pressão deverá recair sobre Lira e, principalmente, Pacheco, que é o presidente do Congresso e que tem como dever defender os direitos dos parlamentares. Também caberá a ambos decidir sobre a tramitação da PEC defendida pelo grupo. Pacheco deve enfrentar questionamentos dentro de casa, já que um grupo de oito senadores, incluindo Flávio Bolsonaro (PL-RJ), assinou uma carta na qual acusam o ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos no STF, de “perseguição política”. A expectativa é que haja reuniões tanto com Lira quanto com Pacheco na volta do recesso, mas o diálogo parece mais fácil com o chefe da Câmara, diz um deputado que afirma ter conversado com o cacique alagoano. Segundo ele, Lira teria mostrado “desconforto” pelo fato de não ter sido avisado por Moraes da ação contra Jordy, uma “cortesia” que teria sido feita em outros episódios.
Moraes, aliás, mais uma vez, é o principal alvo dos bolsonaristas. Uma das reclamações mais ouvidas é a dificuldade para acessarem os inquéritos. As investigações do 8 de Janeiro que visam parlamentares e autoridades públicas estão protegidas pelo mais alto nível do segredo de Justiça. “O advogado só consegue ver o que diz respeito ao seu cliente indo pessoalmente ao gabinete do ministro Alexandre de Moraes, ou seja, o defensor não tem acesso à integra do panorama”, reclama Rafael Arthur Costa, coordenador da defesa de Jordy.
Ao que tudo indica, no entanto, Moraes não vai recuar. Na segunda, 22, ele prorrogou o inquérito das milícias digitais (que envolve parlamentares) por noventa dias. Além disso, não arquivou as investigações contra os deputados André Fernandes, Clarissa Tércio e Silvia Waiãpi, como havia sido pedido pela PGR em julho. O ministro não apenas vem ignorando a solicitação como, ao julgar outro caso neste mês, usou as três apurações como justificativa para manter o 8 de Janeiro sob a jurisdição do STF, alegando que os crimes são conexos com detentores de foro privilegiado. André Fernandes, pré-candidato a prefeito de Fortaleza, que apagou das redes sociais uma foto sua em ato contra a vitória de Lula, reclama: “Enquanto o órgão julgador não decidir, em consonância com as provas, ou a ausência delas, assim como requereu o MPF, pelo arquivamento, o fato será utilizado indevidamente por opositores”.
Apesar de parlamentares terem o direito de tecer críticas a qualquer processo em uma democracia, não há nada até agora que corrobore a tese de perseguição política. No caso de Jordy, Moraes atendeu a um parecer da Procuradoria-Geral da República após pedido feito pela PF. Por ora, tudo mostra que as investigações seguem o rito constitucional. O país precisa que a apuração sobre os lamentáveis episódios seja ampla, mesmo que isso implique averiguar a conduta de pessoas que ganharam um mandato nas urnas, mas estiveram do lado errado da história quando as instituições estiveram sob ataque ou usaram o poder policial para investigar clandestinamente adversários políticos.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877