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A volta da milícia Liga da Justiça nas eleições do Rio de Janeiro

Mais discretos, membros do clã político que comandou grupo renascem das cinzas expandem seus tentáculos pela Zona Oeste do Rio e Baixada Fluminense

Por Marina Lang Atualizado em 24 out 2020, 18h11 - Publicado em 23 out 2020, 20h45

Era uma manhã ensolarada e fresca do último domingo, 18, em Guaratiba, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, quando um carro de som começou a circular pelas ruas do bairro. Escolhida a dedo, a trilha sonora que entrava nas casas aos moradores da região, entoada por uma voz masculina, desafinada e claudicante ao vivo não poderia ser mais emblemática: “O Portão”, clássico do cantor Roberto Carlos de 1974. Um recado nem tão sutil estava dado: “Eu voltei / E agora é para ficar / Porque aqui / Aqui é o meu lugar”.

O cantor improvisado era Jerominho Guimarães que, junto ao seu irmão Natalino, fazia as vezes de cabo eleitoral da filha, a candidata à vereadora Carminha Jerominho (PMB).

Seria mais uma campanha corpo a corpo comum no Rio, não fosse pelo fato de que o clã é apontado por investigadores e pelo Relatório Final da CPI das Milícias, de 2008, como os principais membros da Liga da Justiça, um dos mais famosos e ferozes grupos paramilitares da cidade, responsável por extorsões, assassinatos e outros crimes que movimentavam cerca de R$ 2 milhões por mês à época, de acordo com o depoimento de um delegado durante a comissão parlamentar.

A escolha aparentemente inocente de uma canção nostálgica e insuspeita foi o suficiente para acender o alerta geral na vizinhança: na percepção dos desconfiados cidadãos do bairro, a música era um recado claríssimo – e insólito. “Para as pessoas que não têm muito conhecimento isso se passa despercebido. Mas para quem sabe quem eles são isso é uma ameaça”, contou a VEJA uma moradora do local, que não quis se identificar por medo de represálias.

Conforme VEJA revelou nesta sexta-feira, 23, a Liga da Justiça volta a aparecer no contexto político das eleições do Rio em 2020. Uma pichação dentro de um dos bairros mais complicados de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (região metropolitana da capital), mostrava o principal logotipo do grupo miliciano: o sinal do Batman, marca registrada dos Guimarães durante anos a fio – mais precisamente até Jerominho e Natalino serem presos em 2007 e 2008, condenados em primeira e segunda instância e passarem dez anos atrás das grades até voltarem às ruas no final de 2018. Eles sempre negaram as acusações que lhes foram imputadas, mas nunca se desvencilharam da posição de ideólogos do desenho do bat-sinal de morcego – que, segundo os próprios, era uma criação deles dentro de uma estratégia de campanha eleitoral.

Troca de poderes

Enquanto Jerominho e Natalino marcavam X no calendário dentro do cárcere à espera do dia em que seriam libertados, o corredor de passagem entre Guaratiba, na Zona Oeste do Rio, e Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, foi pavimentado por um nome nos últimos três anos: Wellington da Silva Braga, também conhecido como Ecko, o herdeiro do legado criminal da Liga da Justiça logo após a morte de seu irmão, o Carlinhos Três Pontes, em 2017. Ex-servente de pedreiro, aos 34 anos, Ecko soube montar um consórcio criminal como poucos, reunindo milicianos, sicários, políticos e traficantes, que se estende pelos bairros da Zona Oeste, alguns da Zona Norte e pela região metropolitana do capital – caso de Itaguaí, onde o Bonde do Ecko, uma espécie de spin-off derivada da Liga da Justiça, também fincou suas bandeiras criminosas.

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Wellington da Silva Braga, o Ecko, foi morto em operação que visava capturá-lo
Wellington da Silva Braga, o Ecko (Portal Procurados/Reprodução)

É lá que está um dos maiores portos marítimos e internacionais das terras fluminenses, que também é alvo de grande interesse do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) desde o começo de seu governo.

Na quinta-feira, 22, a Polícia Civil do Rio prendeu um dos principais matadores da região, braço-direito de Ecko e de outro comparsa do bonde, Danilo Dias de Lima, o Tandera, mais um notório foragido da Justiça.

Gil Jorge Santos de Aquino Júnior, o Cova Rasa ou Da Cova, foi líder da milícia que atua na região do bairro Chaperó, e respondia diretamente a Ecko e a Tandera. Não por acaso, o bairro fica a cerca de 20 minutos do Porto de Itaguaí.

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Porto de Itaguaí, ponto estratégico para a milícia da Zona Oeste do Rio (CDRJ/Divulgação)

VEJA apurou que o porto é estratégico para os negócios internacionais de milicianos, que enveredam pelo tráfico de armas, de drogas e tudo mais que seja conveniente para as transações logísticas, financeiras e escusas dos paramilitares.

A mão longa e nem tão invisível da milícia de Ecko em Itaguaí perdeu outros anéis valiosos na semana passada, quando a Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) da Polícia Civil, em ação com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), interceptou e matou um comboio de 12 milicianos.

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Entre as baixas do exército de paramilitares estava Carlos Eduardo Benenvides Gomes, o Cabo Benê. Ele foi indiciado pela Polícia Federal por organização criminosa, extorsão e lavagem de dinheiro em 2008 e acabou sendo expulso dos quadros da Polícia Militar no mesmo ano. Seu nome está citado no relatório final da CPI das Milícias, também em 2008, ao lado de ninguém mais e ninguém menos do que a dupla Natalino e Jerominho Guimarães.

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Cabo Benê, morto em ação da Polícia Civil do Rio (Polícia Civil/Reprodução)

O bairro de Guaratiba que recebeu a mensagem cifrada na canção de Roberto Carlos também é controlado pelo grupo de Ecko. Tudo indica que, de lá até a pichação em Duque de Caxias, o consórcio miliciano estruturado pelo paramilitar deu a sua bênção para que a Liga da Justiça renasça das cinzas. Um pacto – aparentemente tácito e longe de ser unânime – que pode direcionar o destino de milhares de moradores dos bairros mais humildes do Rio.

As coisas talvez tenham mudado um pouco após dez anos de reclusão, mas o clã Guimarães sabe que precisa se ajustar aos novos tempos. Ecko, por sua vez, se demonstrou um excelente arquiteto de alianças aparentemente inusitadas – caso da união com traficantes do Terceiro Comando Puro (TCP) em regime de separação de bens, isto é, vendem-se drogas na região de milícia mediante a comissões e a milícia pode atuar na região do tráfico cobrando suas taxas de gatonet (TV e internet a cabo clandestinas), gás, transporte alternativo e assassinatos sob encomenda.

Para o delegado Rodrigo Teixeira de Oliveira, titular da Subsecretaria de Planejamento e Integração Operacional (SSPIO) da Polícia Civil, todas as facções do crime organizado devem se tornar um projeto de poder único dentro de cinco anos. Isso porque a intenção das milícias é estabelecer um monopólio enquanto único poder possível e existente do submundo da bandidagem. Se antes coibia drogas, hoje a milícia vê no narcotráfico uma imensa e inexplorada fonte de lucro. É daí que vem o termo narcomilícia, alimentado, fundamentalmente, pela visão de geopolítica criminal de Ecko e seus asseclas da bandidagem nos últimos três anos.

Mas as alianças construídas pela milícia com facções do tráfico e entre os próprios milicianos são fugazes; eles podem entrar em desacordo em um instante e iniciar uma guerra no momento seguinte, com tiroteios, execuções e nenhum respeito à vida e à cidadania, porque a sede pelo poder paralelo e pelo dinheiro ilícito que vem dele é maior.

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Em Guaratiba e em partes de Duque de Caxias a milícia não cobra taxa dos moradores no atual momento. Mas o retorno da Liga da Justiça causa calafrios nos residentes dessas localidades.

“Eu não sei dizer também se eles estão voltando apoiados pela milícia atual, mas a sensação que eu tenho é de que não tem conflito”, disse uma residente do bairro da Zona Oeste. “Minha preocupação com o retorno da família Jerominho-Natalino é voltarem a cobrar taxas dos moradores como faziam há alguns anos e de fazerem um controle maior das atividades no bairro”, elenca ela.

Aparentemente, o clã Guimarães não faz o chamado voto de cabresto, mas as investidas constantes em aparições dentro de uma região à margem do poder público parecem ser suficientes.

“Não percebo uma obrigação de voto por parte deles. Infelizmente, a população daqui não precisa de muito pra cair nas promessas. Elegem candidatos por ser conhecidos, por serem os mesmos que aparecem aqui sempre. E o que mais acontece é votarem no candidato que faz boca de urna porque pegam o primeiro papel que veem pela frente”, pondera ela.

Barra de Guaratiba
Barra de Guaratiba, que fica no bairro homônimo (Reprodução/Wikimedia Commons)

Outros candidatos que não sejam ligados à milícia não são vistos na região, contudo. “Nunca vi nenhum outro candidato por aqui. Provavelmente, eles controlam isso, já que o próprio PSOL tem candidatos aqui na Zona Oeste e nunca vi nenhum chegar em Guaratiba. No máximo, [chegam em] Campo Grande ou Santa Cruz”, afirmou.

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A presença única de alguns candidatos em determinados territórios é, na percepção de mais de uma dezena de autoridades consultadas por VEJA, um grande indício da capilaridade centralizadora e dominadora de grupos milicianos.

De acordo com Allan Turnowski, recém-empossado Secretário da Polícia Civil do Rio, três candidatos às eleições no Rio devem prestar depoimento à polícia em breve por suposta prática de crimes eleitorais.

Enquanto isso, Jerominho e Natalino seguem ávidos tentando conquistar votos pela filha Carminha e pela candidata à Prefeitura do Rio, Suêd Haidar, cuja vice é a filha de Natalino, Jéssica.

Então deputado em 1º de novembro de 2007, Natalino concedeu à filha uma Moção de Aplausos e Congratulações na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) “pelos relevantes serviços prestados, sendo exemplo de dedicação e dignidade, atuando sempre com grande destaque na busca incessante da melhoria de qualidade de vida das comunidades. Parabenizo a homenageada por seu desempenho, coragem e espírito corporativo, princípios básicos para aqueles que trabalham em prol do desenvolvimento do nosso Estado”.

A ementa da Alerj não esclarece quais serviços relevantes foram prestados por Jéssica que, naquela época, era uma adolescente de 16 anos. Oito meses depois, em julho de 2008, o parlamentar seria preso pela Polícia Civil por chefiar a milícia Liga da Justiça.

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VEJA tentou contato, em duas ocasiões, com a candidata à vereadora Carminha Jerominho. Na primeira ligação, a assessora pediu um intervalo de dez minutos, o que foi concedido. Durante o segundo telefonema e enquanto a reportagem aguardava, alguém disse: “depois eu falo contigo”. A ligação foi, então, encerrada.

Doze anos se passaram desde a CPI das Milícias e tanto Natalino quanto Jerominho cumpriram suas dívidas penais com a sociedade. O resultado das eleições ainda é uma incógnita e só será confirmado em 15 de novembro, dia do pleito. Mas tudo indica que a spin-off miliciana de Ecko está pacificamente alinhada com os interesses da Liga da Justiça da qual se derivou – pelo menos, por enquanto.

Mesmo assim, o clã da Liga da Justiça já deu seu recado por meio do clássico musical: voltou, e agora é para ficar. Só o tempo dirá o quanto essa aliança – registrada por VEJA nas ruas por dentro do Rio de Janeiro profundo – vai durar.

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