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Como as milícias do Rio de Janeiro interferem na campanha eleitoral

A proximidade do pleito expõe o poder dos grupos criminosos cariocas: em seu território só faz campanha e só ganha quem eles deixam

Por Cássio Bruno, Marina Lang, Sofia Cerqueira Atualizado em 23 out 2020, 10h07 - Publicado em 23 out 2020, 06h00

Nada de bandeira de candidato, faixa com propaganda ou carro coberto de adesivos. A menos de um mês das eleições municipais, é mínima a atividade de campanha no amontoado de casas, predinhos, lojas e vielas de Rio das Pedras e Muzema, duas favelas vizinhas na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Ali nasceram as milícias fluminenses, grupos de criminosos, muitos deles agentes públicos ligados à área de segurança, como policiais, bombeiros e guardas municipais, que exploram serviços irregulares e se valem do terror para dominar áreas inteiras da cidade. A cada eleição, os chefes ditam quem está autorizado a fazer campanha ali e coagem os moradores a votar em seus apadrinhados, sob pena de represálias que podem chegar à morte. Às vésperas da votação de 2020, porém, a força das gangues alcança patamares jamais vistos, fruto da vertiginosa expansão de seu território.

No Rio sem lei, onde o crime organizado ou é mal combatido, ou se locupleta do setor público, um estudo envolvendo a Universidade Federal Fluminense e a Universidade de São Paulo constatou que um em cada três moradores da capital vive atualmente em bairros com alguma atuação da milícia. E esse contingente de cidadãos subjugados pela força não para de crescer: dados inéditos da Polícia Civil mostram que, entre 2008 e 2020, o número de morros, favelas e bairros sob o domínio de milicianos mais do que dobrou, de 160 para 393. Com poder de vida ou morte, literalmente, sobre quase 2 milhões de eleitores, o crime se tornou o cabo eleitoral mais influente do estado.

Criminosos engrossam o caldo eleitoral fluminense desde sempre. A balança costumava pender ora para o tráfico, ora para a milícia, até esta última, mais organizada no entrelaçamento com a política, sair da sombra e galgar um novo degrau na criminalidade. As milícias funcionam hoje como empresas, com distribuição de tarefas e divisão hierárquica definidas, e atuam em muitas frentes de negócios — sendo a eleição uma das mais lucrativas. Levantamento do Tribunal Regional Eleitoral aponta que o voto em seus domínios custa 100 reais per capita, o que significa que um candidato pode gastar cerca de 5 milhões de reais pelo direito de fazer campanha e contar com cabos eleitorais locais em uma área, por exemplo, de 50 000 habitantes.

PROXIMIDADE - Propaganda de Siciliano: suspeita de “estreita ligação” – (Alex Ferro/VEJA)

A milícia também lança candidatos próprios, se enfronhando nos partidos e na administração pública. Um morador de um bairro na Zona Oeste detalhou a VEJA a fórmula do achaque eleitoral. Os milicianos convocam a população para uma reunião, portando identidade e título de eleitor. Cadastram um a um e passam a monitorá-los para impedir que apoiem candidatos “de fora”. No dia do pleito, com o mapa eleitoral da região em mãos, fazem sua boca de urna, ameaçando quem chega ao local de votação com “olha bem em quem você vai votar” — às vezes na cara da polícia. “A maioria cede à pressão, por medo de morrer”, diz o morador. “É difícil um candidato vencer sem ter o apoio das milícias”, afirma o juiz Marcello Rubioli, do Tribunal de Justiça do Rio, especializado em crime organizado.

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Em Rio das Pedras e Muzema, áreas visitadas pela reportagem de VEJA, o único material de divulgação visível pertence a dois candidatos a vereador: Marcello Siciliano (Progressistas), que disputa a reeleição, e Marcelo Diniz (Solidariedade), um líder comunitário local. Siciliano aparece em um inquérito que vê “estreita ligação” dele com a milícia que dá as cartas na Gardênia Azul, outra favela das redondezas – sem falar no fato de, a certa altura, ter sido apontado pela polícia como um dos suspeitos do assassinato de Marielle Franco, outro crime atribuído a milicianos. Diniz, por sua vez, é alvo de duas notificações no Disque-Denúncia pelo modo de agir: acompanhado de capangas armados, estaria extorquindo comerciantes e moradores da citada Muzema. “A atuação desta organização criminosa compromete o processo eleitoral democrático”, afirma o juiz Luiz Márcio Pereira, do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ), que integra uma força-tarefa com a Polícia Civil e o Ministério Público para investigar denúncias e punir crimes eleitorais.

As milícias nasceram nos grupos de extermínio que agiam na Baixada Fluminense, nos anos 1960, e mantiveram por décadas a fama de truculentas, porém bem-intencionadas, por garantirem a segurança deixando o tráfico afastado. “Elas tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando”, disse, na campanha de 2018, o presidente Jair Bolsonaro. Dez anos antes ele declarara: “O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes, e talvez, no futuro, legalizá-las”. Com o tempo, a “segurança” passou a ser cobrada e novos negócios foram se abrindo em sistema de monopólio: o transporte por vans clandestinas, os “gatos” na fiação, a pirataria dos canais a cabo, a venda de botijões de gás, a agiotagem, as mortes por encomenda e, mais recentemente, o ramo imobiliário ilegal. Boa parte do território na Zona Oeste era dominada até o início do ano por Adriano da Nóbrega, ex-policial militar que virou um dos maiores chefões milicianos do Rio até ser morto pela polícia em fevereiro, na Bahia, onde vivia escondido. Ele viria a ser tornar figura emblemática da influência desse poder paralelo na política: chegou a ter a mãe e a ex-mulher na lista de funcionários do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e por ele foi condecorado.

AMEAÇA - A ex-delegada Martha Rocha, candidata à prefeitura: denúncia de um plano de emboscada para matá-la – (Maga Jr/Ofotografico/Agência O Globo)

Mantendo o ritmo atual de crescimento, em cinco anos as milícias vão ultrapassar de vez o tráfico e se transformar na maior força do crime no estado do Rio. Até por uma questão de engenharia financeira — ganham mais dinheiro com elas do que lutando contra elas —, os traficantes estão se associando aos milicianos, formando “narcomilícias” no molde das maras mexicanas, um dos grupos mais bem situados na cadeia evolutiva dos bandos paramilitares no mundo. “A prioridade da polícia hoje é o combate às milícias. Estamos investigando candidatos que dominam áreas eleitorais onde outros não podem pisar”, diz Allan Turnowski, recém-empossado secretário da Polícia Civil fluminense. “A relação assistencialista favorece a entrada na política, transformando o domínio territorial em eleitoral”, diz o sociólogo José Cláudio Alves.

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O projeto de poder político dos bandos paramilitares deu uma refreada quando, em 2008, as investigações de uma CPI das milícias na Alerj resultaram na prisão do ex-deputado estadual Natalino José Guimarães e de seu irmão, o ex-vereador Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, acusados de chefiar a Liga da Justiça, uma das mais poderosas milícias da época. Depois de passar dez anos na cadeia, os irmãos partem agora para novas empreitadas políticas. No Partido da Mulher Brasileira (PMB), onde Suêd Haidar é candidata a prefeita, a vice da chapa é Jéssica Natalino, sobrinha de Jerominho, e a principal puxadora de votos, sua filha Carminha. “Há alguns anos, era comum os próprios milicianos se lançarem candidatos. Hoje, preferem atuar mais nos bastidores”, explica a promotora Simone Sibilio, chefe do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio, que no último ano denunciou 603 integrantes dessas quadrilhas à Justiça.

TROCA - Chefão: a Liga da Justiça de Jerominho (à esq.) cedeu o pódio das milícias ao bando do procurado Ecko – (Ricardo Borges/VEJA)

À medida que a eleição se aproxima, mais o ambiente político sente o peso das milícias. Entre janeiro e outubro deste ano, o Disque-Denúncia registrou 371 ligações sobre possíveis crimes eleitorais, sendo 103 delas envolvendo milicianos. A mais grave, segundo apuração de VEJA, diz respeito à deputada estadual Martha Rocha (PDT), ex-chefe da Polícia Civil do Rio e candidata à prefeitura. Wellington da Silva Braga, o Ecko, integrante do alto comando miliciano e o mais procurado criminoso do Rio, teria planejado uma emboscada para matar a ex-delegada no dia 15 de setembro. “Esta denúncia está sendo apreciada pela polícia”, limita-se a dizer Martha Rocha.

O Bonde do Ecko, quadrilha que acumula mais de 400 fuzis e tem na conta crimes de homicídio, extorsão e lavagem de dinheiro, é justamente uma dissidência da antes onipresente Liga da Justiça. O chefe do bando, desaparecido desde 2016, tem entre seus trinta guarda-costas agentes do próprio Bope, o batalhão de elite da polícia, e se desloca em comboios de cinco ou seis carros. Essas gangues fluminenses inspiraram cópias pelo país, mas é no Rio que elas mais se esparramam e mandam — inclusive cooptando mão de obra barata e sem RG em outros estados, para facilitar o descarte dos inconvenientes. “A milícia transita entre o ilícito e a chancela do lícito. Ela penetra no poder com o aval dos órgãos públicos”, alerta Júlio Araújo Júnior, procurador do Ministério Público Federal. Sem combate sério, a eleição permitirá que os polvos paramilitares ampliem ainda mais os seus tentáculos.

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Publicado em VEJA de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710

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