Boa parte do saldo macabro da pandemia (700 000 mortes, tragédia que entrou para a história) pode ser atribuída diretamente à resistência do governo na época em agilizar a vacinação contra a Covid-19. Jair Bolsonaro ironizou a CoronaVac (o imunizante chinês comprado pelo então governador de São Paulo João Doria, que forneceu a dose pioneira durante a crise sanitária), o Ministério da Saúde de Eduardo Pazuello não deu bola para a oferta da Pfizer e, por mais de uma vez, o então presidente deixou claro que não iria se proteger. Se não bastasse, divulgou notícias falsas sobre supostos efeitos colaterais dos produtos desenvolvidos criteriosamente por laboratórios confiáveis em tempo recorde. Ainda bem que a imensa maioria dos brasileiros não seguiu o exemplo. O estrago estava feito, é verdade, mas poderia ter sido pior. Lamentavelmente, alguns políticos nacionais não aprenderam a lição. O ano de 2024 mostrou que, mais resistente que o vírus (e ele está de volta), é a praga do negacionismo, um desafio ainda a ser erradicado.
Por incrível que pareça, ainda há governadores de lanças em punho na briga contra a vacinação obrigatória. Em um vídeo publicado recentemente nas redes sociais, Jorginho Mello (PL), em Santa Catarina, aliado de Bolsonaro (sim, nada é mera coincidência) e presença confirmada na defesa do ex-presidente na manifestação prevista para domingo, 25, na Avenida Paulista, afirmou que o imunizante não é obrigatório no estado e, assim, as crianças estão livres de ter que mostrar o atestado para frequentar as aulas. No ano passado, ele também revogou um decreto que exigia o mesmo dos professores. A postura contaminou prefeitos de pelo menos vinte municípios catarinenses, incluindo Joinville, Balneário Camboriú e Blumenau, que publicaram decretos semelhantes.
Outro mau exemplo vem de Minas Gerais. O governador Romeu Zema (Novo) apareceu em um vídeo ao lado do senador Cleitinho (Republicanos-MG) e do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), ambos bolsonaristas (de novo, não é mera coincidência), dizendo que todo aluno, independentemente de ter ou não se vacinado, poderia se matricular nas escolas do estado. Dias depois, Zema reafirmou seu posicionamento e declarou que as crianças devem estudar ciências para poderem decidir se querem ou não a vacina. Um absurdo completo, como se vê.
Mais uma vez, a exemplo do que já havia ocorrido na pandemia, o STF entrou em campo para bloquear o negacionismo. No caso de Santa Catarina, o ministro Cristiano Zanin atendeu a um pedido do PSOL e suspendeu as canetadas dos vinte prefeitos do estado, alegando que os municípios não podem contrariar a obrigatoriedade de vacinas incluídas no Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde. Zanin ainda determinou que o governador e os chefes dos executivos municipais se abstenham de promover quaisquer atos que possam dificultar a execução do calendário de proteção. O artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que a imunização das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias é obrigatória. Além disso, a Corte já havia decidido a favor da exigência da vacina contra a Covid. Já o mineiro Zema entrou na mira do ministro Alexandre de Moraes, que deu cinco dias para o governador se explicar. Ele afirmou que nunca foi obrigatória a apresentação do cartão de vacinação na rede estadual de ensino e reclamou ser alvo de censura. “Trata-se, com efeito, de manifestação singela e elucidativa, que visou a informar as famílias acerca da inexistência de impedimentos à matrícula escolar”, diz a manifestação de Zema.
Essa nova e irresponsável ofensiva política contra a vacinação não poderia vir em pior hora, já que o ano começou com aumento do número de casos de Covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde. Nas primeiras seis semanas de 2024, o Brasil registrou mais de 196 000 novos casos da doença, o equivalente a cerca de 32 500 por semana — no mesmo período do ano passado, a média era de 22 000. A tendência é que, por conta das aglomerações do Carnaval, fevereiro chegue ao final com alta considerável das infecções. O governo constatou, ainda, que nove em cada dez mortes por síndrome respiratória aguda grave (SRAG) ocorridas desde janeiro foram causadas pelo coronavírus.
A adesão à vacinação continua sendo um desafio enfrentado no país, especialmente entre as crianças e adolescentes, que, de uma maneira ou outra, dependem do aval dos pais ou responsáveis para se imunizarem. Na faixa etária de 3 a 17 anos, mais de 34 milhões de jovens receberam a primeira dose de vacina monovalente contra a Covid-19, mas menos de 1,7 milhão chegaram à dose inicial de reforço, de acordo com o Vacinômetro do Ministério da Saúde. O ano mais crítico para a imunização no Brasil foi 2021, quando a média de cobertura vacinal despencou para 52% da população — dado alarmante para um país que, historicamente, é referência global em programas do tipo.
A adesão voltou a subir em 2023, mas os brasileiros ainda sentem os reflexos da desconfiança em relação às vacinas plantada durante os anos Bolsonaro. Segundo especialistas, a ideologia “antivax” tem suas raízes em teorias conspiratórias surgidas nos Estados Unidos e foi “importada” pela direita brasileira como parte de uma estratégia de desinformação e radicalização política. “Ainda existe toda uma rede que produz conteúdos falsos, contestando métodos científicos que já são consolidados, e explora o medo e a dúvida por parte da população”, afirma Soraya Smaili, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora-geral do núcleo Sou Ciência.
Felizmente, ainda que a Covid-19 continue a deixar vítimas fatais, o risco atual representado por uma nova onda não chega perto da tragédia humanitária da pandemia. Apesar do aumento do número de casos desde janeiro, o índice de letalidade caiu — nas seis primeiras semanas de 2024, o coronavírus causou 1 127 óbitos, contra 3 751 no mesmo período do ano passado (graças, mais uma vez, aos imunizantes). Na visão de pesquisadores, a ideologia antivacina não foi — e nem será – facilmente exterminada, mas o cenário sombrio que se desenhou entre 2020 e 2021 serviu de alerta à população sobre a ameaça representada pelo negacionismo.
Serve de alívio para este momento também o fato de que, ao contrário do governo anterior, a gestão atual joga totalmente a favor da ciência. Logo após a posse, o Ministério da Saúde lançou o Movimento Nacional pela Vacinação, com ações para ampliar a cobertura de todas as vacinas disponíveis no SUS. Na ocasião, o próprio Lula recebeu a quinta dose contra a Covid-19, aplicada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin. A previsão é de que sejam aplicados 60 milhões de doses ao longo do ano do imunizante contra o coronavírus. O governo também aumentou o esforço no combate às fake news sobre o assunto. O conjunto de ações só não conseguiu debelar ainda o vírus da irresponsabilidade que ainda resiste em alguns estados brasileiros.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881