Emílio Odebrecht e o filho Marcelo Odebrecht comandaram juntos a maior construtora do país por sete anos. A Operação Lava-Jato descobriu que, nesse período, eles também pilotaram um esquema de corrupção que movimentou mais de 10 bilhões de reais em pagamentos de propina no Brasil e em outros onze países. Marcelo foi condenado a dezenove anos de prisão, fez um acordo de delação premiada e atualmente cumpre pena em regime semiaberto. Suas confissões e as de outros executivos da empreiteira envolveram doze governadores de estado, 61 parlamentares e três ex-presidentes da República — o emedebista Michel Temer e os petistas Dilma Rousseff e Lula, que já foi condenado e preso. Agora, uma briga que tem como pano de fundo o pagamento equivalente a 268 milhões de reais pode pôr tudo a perder. A Odebrecht, comandada por um fiel escudeiro de Emílio, acusa Marcelo de achacar a empresa usando como arma o acordo de colaboração com a Justiça. Marcelo, por sua vez, diz que Emílio está tentando sufocá-lo financeiramente para impedir que ele continue revelando os segredos que o pai escondeu e ainda esconde das autoridades. O embate entre os dois, que começou quando Marcelo assumiu o papel de delator, entrou recentemente em estado de efervescência.
No fim do ano passado, Marcelo entregou ao Ministério Público um conjunto de documentos que apontam indícios de que a Odebrecht e a Braskem, empresa do mesmo grupo, “teriam omitido fatos e provas” que “podem ser do interesse de autoridades brasileiras e norte-americanas”. Entre as evidências destacadas pelo empresário, estão bônus pagos por Emílio Odebrecht na Suíça e que não foram declarados aos investigadores durante a negociação dos acordos de delação premiada. Depois disso, pai e filho praticamente não se falaram mais. No dia 1º de março deste ano, Marcelo enviou um e-mail a Emílio e a seu cunhado, Maurício Ferro, ex-diretor jurídico da empreiteira. Era um aceno de paz que, nas entrelinhas, também continha uma ameaça: “Meu pai, e Maurício, vocês estão indo por um caminho que além de extremamente desleal e desonesto, vai me empurrar/obrigar uma linha de defesa que só vai prejudicar vocês, e tantos outros. Tenho sempre me colocado em uma posição de buscar não apenas a conciliação, como também de contribuir no que é melhor para o todo. O que tenho visto, porém, são atitudes além de raivosas, insensatas”.
Emílio está convencido de que o filho usou a Lava-Jato para engordar a própria conta bancária. Durante as negociações dos acordos de colaboração, a empresa aprovou um pagamento de meio bilhão de reais em indenizações a Marcelo e outros 77 executivos que toparam colaborar com a Justiça. Marcelo, sozinho, levou a maior parte dessa bolada. Ele foi contemplado com 268 milhões de reais, sendo 73 milhões para quitar a multa judicial, 143 milhões de reais a título de compensação e mais 52 milhões em bônus por serviços prestados como presidente da empreiteira no período de 2013 a 2015. Essa montanha de dinheiro está na raiz da atual batalha entre pai e filho — e foi o que motivou Marcelo a enviar o e-mail com o aceno de paz, que acabou ignorado.
Dois dias depois da mensagem, a Odebrecht, hoje comandada por um executivo ligado a Emílio, ingressou com uma ação na Justiça e bloqueou os 143 milhões de reais depositados em nome da mulher e das filhas de Marcelo. Quinze dias depois, mais uma prova de que a guerra era para valer. Na 9ª Vara de Família, em São Paulo, Marcelo tentava mudar o status do seu regime de casamento. Numa petição anexada aos autos, a empresa pediu a suspensão do processo argumentando que estava em curso um “instrumento fraudulento de ocultação patrimonial”. O documento faz o relato de que uma investigação interna descobriu “diversos atos irregulares” praticados por Marcelo “que privaram a companhia de vultosas quantias de dinheiro” e ainda acusou o empreiteiro de pôr em prática uma “estratégia de blindagem patrimonial para evitar a devolução de valores indevidamente pagos a ele”. A ofensiva do pai continuou.
Em um terceiro processo, a Odebrecht pediu a anulação do contrato que previa o pagamento do bônus de 52 milhões de reais a Marcelo. A empresa se disse vítima de chantagem: “O Senhor Marcelo Odebrecht, desde que foi preso em função do revelado pela Operação Lava-Jato, passou a ameaçar a Odebrecht S.A. de diversas formas”, ressalta o documento. Marcelo teria exigido mais 40 milhões de reais para não fazer novas denúncias que envolveriam integrantes e ex-funcionários da companhia. A Odebrecht informou que “não aceitou pagar mais nenhum centavo” a Marcelo e que decidiu “dar um basta na escalada de ameaças” do empresário. Marcelo ainda foi acusado de ter conduzido o “multimilionário esquema de corrupção que hoje tem como seu principal resultado a crise financeira e a recuperação judicial de empresas do grupo”. Depois desse cerco, as relações entre pai e filho se romperam de uma vez por todas. Para Marcelo, Emílio usa o poder econômico para tentar impedir que ele continue colaborando com a Justiça.
A briga acabou envolvendo toda a família. Em março, já em meio ao conflito, a mãe de Marcelo, Regina, tentou reaproximar pai e filho. “Seu pai pede, para que o futuro possa ser construído, que vc desça do pedestal, seja humilde, pois sua doença tem ofuscado seus sentimentos e memória lhe fazendo uma pessoa rancorosa e cega aos sofrimentos de terceiros, só enxerga os seus”, escreveu em uma mensagem. O conselho não surtiu efeito. Marcelo já havia formalizado na Justiça a acusação contra o pai. Segundo ele, Emílio manipulou o acordo com as autoridades americanas com objetivo de impedir que irregularidades da empresa no exterior fossem reveladas. Antes disso, o empreiteiro também já havia enviado às autoridades 10 000 páginas de registros pessoais e 5 000 e-mails. Parte desse material e de novos depoimentos de Marcelo resultou em denúncias criminais contra Maurício Ferro, o cunhado, e Mônica Odebrecht, a irmã, o que ampliou ainda mais o conflito familiar. Por essa nova colaboração, o empreiteiro ganhou o benefício de cumprir pena em regime semiaberto e voltar a frequentar a empresa.
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Clique e AssineAntes do rompimento definitivo, Marcelo já mostrava o tamanho da mágoa que guarda em relação ao pai. “Dói muito que eu nunca tenha sido defendido por meu próprio pai. Eu nunca deixaria uma filha ou pai ser incriminado, e trucidado na mídia por algo que não fez, sem sair publicamente em sua defesa”, diz um bilhete anexado aos processos. O empreiteiro ficou 914 dias preso em regime fechado. Em dezembro, após fazer as acusações envolvendo o pai e o cunhado, ele foi demitido da empresa — “por justa causa”. No comunicado de dispensa, a Odebrecht justificou que o ex-presidente da companhia vinha “afirmando publicamente a existência de infundadas irregularidades praticadas pela Odebrecht e por superiores hierárquicos, o que caracteriza mau procedimento”.
Dois dias depois da demissão, a mãe do empresário enviou um bilhete a Marcelo tentando novamente contemporizar. “Filho, precisamos sair de cena, nós e toda a família, para que seu pai possa se concentrar em buscar desfazer tudo o que estava programado”, afirmou ela. Mais uma vez, ele ignorou o pedido e aumentou a carga contra Emílio, fazendo denúncias de supostas irregularidades envolvendo executivos ligados ao patriarca. Marcelo chegou a escrever um texto e enviar ao alto escalão da empresa se colocando à disposição para mostrar as irregularidades que estava denunciando e explicar as consequências deletérias do litígio com o pai. De acordo com o próprio Marcelo, esses litígios iam “muito além de causarem prejuízos ao réu e à sua família”. A briga estaria provocando um dano superior a 5 bilhões de dólares (26,5 bilhões de reais, em valores atuais) e atingiria não só as empresas, mas também a efetividade dos acordos de colaboração e leniência.
Essa guerra judicial dos Odebrecht, além de poder comprometer a credibilidade das informações prestadas pelos delatores, acabou expondo a tabela com valores dos pagamentos de indenizações previstos a 78 executivos-delatores. No documento, há uma relação de quanto cada colaborador recebeu da empreiteira para compensar a demissão e os valores das multas de cada um que foram quitadas pela companhia. Alguns condenados já estão de olho nessa possibilidade. O ex-presidente Lula, por exemplo, já pediu ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região a apuração da troca de acusações da família Odebrecht. Para Lula, “delações tomadas como verdade absoluta foram negociadas e calibradas de acordo com recompensa paga”. Isso, de acordo com o ex-presidente, compromete uma de suas condenações por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Em sua colaboração, Marcelo Odebrecht disse à Justiça que a empreiteira reformou um sítio em Atibaia a pedido da ex-primeira-dama Marisa Letícia e que abateu os custos da obra de uma conta de propina. Lula foi condenado a dezessete anos de prisão. “A venda de delações é cristalina”, afirma a defesa do ex-presidente. Evidentemente, há coisas bem mais cristalinas nas relações da Odebrecht com o poder. Amigo íntimo do ex-presidente, a quem chamava de “chefe”, o próprio Emílio Odebrecht confirmou ter tratado da reforma do sítio diretamente com Lula numa conversa que os dois tiveram no Palácio do Planalto.
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695