Em 8 de janeiro de 2019, meu mundo desabou. No trabalho, uma amiga me perguntou se Christian, meu filho, estava em casa. Disse que naquele dia ele estava no Ninho do Urubu, o Centro de Treinamento do Flamengo, para onde tinha ido treinar na véspera. Aí ela me mostrou uma reportagem que falava sobre o incêndio que havia acabado de acontecer por lá. Meu coração gelou, e liguei para ele, na esperança de que iria me atender. Nada. Entrei no primeiro táxi que vi, a viagem mais demorada e angustiante da minha vida. No caminho, ligava para as pessoas e pedia a todos que orassem para que estivesse vivo. Falei com a namorada dele, por quem era apaixonado. Assim que cheguei, vi um dos funcionários do CT que conhecia e perguntei do Christian. Pela expressão de tristeza, logo entendi que meu filho não tinha sobrevivido. Não senti o corpo e desmaiei. Só pensava: como vou seguir sem o meu menino? Cinco anos após a tragédia, a resposta é: com uma dor que não passa.
Quando tudo aconteceu, o Flamengo não me ligou. A confirmação veio pela televisão, que colocou o nome de Christian entre os mortos. O primeiro contato com o clube se deu uma semana depois, num jogo no Maracanã, que reuniu familiares dos dez adolescentes que perderam a vida. Aquela partida foi emocionante. O maior sonho do Christian era entrar em campo ali. Foi nessa ocasião que mencionaram uma ajuda financeira aos parentes das vítimas. Mas o descaso era tanto que o presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, nem nos cumprimentou. Comecei a receber 5 000 reais por mês, que divido com o pai do Christian. Eles querem virar a página a todo custo, sem assumir a responsabilidade. As investigações mostraram que o clube foi avisado de que havia problemas na estrutura do Ninho quase dez anos antes e nada fez. Desde o princípio, o Flamengo tenta se esquivar, lançando a culpa sobre outras empresas, funcionários e até a chuva. O fato é que entregamos Christian acreditando estar em local seguro, e ele saiu de lá sem vida.
As negociações sobre a indenização começaram de verdade apenas em 2021. Ao contrário das outras famílias, decidimos não aceitar o valor oferecido porque achamos que não cabe a eles, do Flamengo, precificar a tragédia pela qual respondem como réus. Somos criticados por alguns por não aceitarmos o acordo, mas vamos em frente. Cada audiência é uma tortura. Sou obrigada a reviver toda a história, e o luto bate forte. Preciso também lidar com a frieza do clube. Sinto que, para eles, meu filho não tem importância. Em outubro de 2023, na última vez em que compareci ao tribunal, testemunhei o deboche dos advogados em relação à indenização, insinuando que eu quero ganhar em cima da tragédia. A única coisa que eu queria mesmo é meu filho de volta. Como não é possível, luto por um acerto digno, por justiça (chegou a circular a cifra de 8 milhões de reais, mas ela não confirma).
Dói demais saber que o Flamengo, mesmo alertado da situação irregular dos alojamentos, ignorou o perigo. O sonho de Christian foi interrompido por puro descaso de um clube poderoso. Meu filho era minha base, meu pilar. Era um menino diferente, amoroso e, ao mesmo tempo, muito ambicioso. Ele estava determinado a dar uma condição melhor a mim, ao pai e aos dois irmãos. Sigo adiante sem uma parte de mim, que jamais será preenchida. Perdi um filho que era amigo e até conselheiro, ainda tão novo, com seus 15 anos. O sentimento é avassalador. Não o desejo a ninguém. Conviver com esse luto exige força, e ela vem, em parte, das memórias que guardo. Nunca vou esquecer a ternura contida no abraço do meu filho. Isso ninguém me tira.
Andreia de Oliveira em Depoimento dado a Mafê Firpo
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879