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A Deus o que é de César

Alinhada a um governo que encampa suas pautas principais, a bancada evangélica na Câmara mostra ambições mais amplas, que não se limitam ao terreno moral

Por Eduardo Gonçalves Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h20 - Publicado em 3 Maio 2019, 07h00
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  • Toda quarta-feira às 8 horas o plenário 6 da Câmara dos Deputados se converte em igreja. Com a Bíblia nas mãos, parlamentares e assessores, alguns acompanhados da esposa, agrupam-se para o “culto devocional”. Religião e poder dão-se as mãos. O culto de 27 de março, por exemplo, começou com aleluias e glórias ao senhor, enquanto a deputada e cantora gospel Lauriete Rodrigues (PR-ES) — ex-­mulher do ex-senador Magno Malta — puxava o louvor com seu violão. O deputado e pastor Francisco Eurico da Silva (Patriota-­PE), capelão da bancada evangélica, fez a pregação do dia. Depois, uma questão mundana se impôs: a escolha do novo líder da Frente Parlamentar Evangélica, composta hoje de 120 parlamentares ativos, um recorde desde a sua fundação, em 2002 — e maior, muito maior, do que qualquer partido político no Congresso Nacional.

    Não há nem nunca houve votação para o posto de líder da frente religiosa: após discussões por vezes ásperas, Silas Câmara (PRB-AM) foi sagrado por aclamação. Há diferenças e divisões na frente, mas a unidade de ação da bancada, nesta legislatura, vem amparada por uma convicção renovada na força política que o eleitorado evangélico demonstrou: foram os evangélicos que, proporcionalmente, mais sustentaram a eleição de Jair Bolsonaro. E o presidente dá repetidas mostras de alinhamento com o setor. Agora mesmo, matou no nascedouro a ideia de um novo imposto que incidiria também sobre as igrejas, o que mostra a força da bancada evangélica.

    Jair Bolsonaro, Silas Malafaia, Dias Toffoli e Wilson Witzel
    REPÚBLICA DE JESUS –  Bolsonaro, pastor Malafaia, Dias Toffoli e Witzel em encontro no Rio: o poder da fé (Mauro Pimentel/AFP)
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    (./.)

    O caso foi o seguinte. Na segunda-­feira 29, o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, aventou a criação de um novo imposto para simplificar o sistema tributário brasileiro, que incidiria sobre o dízimo das igrejas, hoje imunes a tributação. Parlamentares evangélicos mais próximos ao presidente — como Marco Feliciano — e líderes evangélicos que circulam pelos salões da política — como Silas Malafaia — soterraram Bolsonaro com telefonemas e mensagens. Em seguida, o presidente divulgou um vídeo no Twitter para desmentir o secretário em termos inequívocos: “Não haverá novo imposto para as igrejas”. “As igrejas gastam muito mais do que recebem. Na igreja, os fiéis aprendem a pagar os seus impostos e a respeitar as autoridades”, justificou o ex-presidente da frente, deputado e pastor Lincoln Portela (PR-MG) — por ironia, um amigo de Marcos Cintra.

    Desde há muito uma força política cortejada pelos mais diversos partidos, os evangélicos agora têm ambições mais amplas, que não se limitam a batalhar por vantagens tributárias, alvarás de templos ou concessões de rádio. O mapa político da frente segue mais as divisões religiosas do que as partidárias. Há uma profusão de denominações em disputa. Cinco parlamentares pleitearam a liderança da frente, por exemplo. Silas Câmara surgiu como um nome de compromisso entre candidatos de ramos rivais da Assembleia de Deus, e foi por isso que ganhou. Encerrado o culto-sessão, enquanto o novo líder conversava com VEJA, uma assessora o interrompeu para que ele atendesse o bispo Manoel Ferreira, da Assembleia de Deus do Ministério Madureira. “Sou seu soldado, meu líder”, disse, ao celular, o novo presidente da Frente Evangélica. A lealdade desses deputados não está com caciques políticos, mas com pastores e bispos. “É uma nova elite que está se formando, que tem capital cultural diferente do da elite que nós conhecemos”, diz a coordenadora do Centro de Estudos sobre Temas da Religião da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Maria das Dores Campos Machado.

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    Os políticos evangélicos, sobretudo os pentecostais e neopentecostais, que compõem 60% da bancada, não querem mais ser coadjuvantes. A frente conta com 120 membros ativos, mas, como é praxe nesses casos, outros 83 apoiadores assinaram o documento que a instituiu. Esses são, em sua maioria, de outras religiões, como católicos e espíritas. Temas morais e comportamentais sempre estiveram associados a essa bancada, mas agora eles convivem com novos interesses. A educação, por exemplo: está prevista para a próxima semana a inauguração, em Brasília, da primeira faculdade no país ligada a uma sigla política, o PRB, o partido da Igreja Universal do Reino de Deus, como é conhecido nos corredores da Câmara. A autorização de funcionamento da instituição foi concedida pelo Ministério da Educação em novembro de 2018, no governo Temer. Quem vai gerir a instituição é a Fundação Republicana Brasileira, que recebe 20% da verba do fundo partidário destinada ao PRB. “É a primeira fundação ligada a um partido político do Brasil que terá uma faculdade autorizada pelo MEC”, celebra o deputado Marcos Pereira (PRB-SP). O Brasil já tem universidades ligadas a igrejas — católicas, presbiterianas, luteranas, metodistas —, mas isso é novidade entre as neopentecostais.

    Os políticos evangélicos estão com o governo Bolsonaro na oposição à suposta doutrinação esquerdista em escolas e universidades. Também desejam, por razões teológicas, a transferência da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém: “Tudo em que Israel toca o dedo é abençoado. Nunca vi um judeu passar fome”, diz o deputado Pastor Eurico (Patriota-PE). A bancada evangélica deseja encampar também temas econômicos aos quais não costuma ser associada. A reforma da Previdência seria a principal bandeira, mas aqui não há unanimidade. Entre os mais aguerridos defensores da reforma está um ex-deputado que ainda tem influência sobre antigos colegas de bancada, o bispo Robson Rodovalho, da Igreja Sara Nossa Terra. Rodovalho gosta de dizer aos quatro ventos que tem uma rede de 1 500 empresários cadastrados em sua igreja, entre eles Flávio Rocha, dono das lojas Riachuelo. Em 2018, a empresa de comunicação de Rodovalho chegou até a receber dinheiro do governo Temer para propagandear a reforma em seus canais de TV e rádio. Foi um dos primeiros a mergulhar de cabeça na campanha de Bolsonaro, mas, nos idos de 2012, vestia camiseta vermelha — apoiou o petista Fernando Haddad, que então venceu a disputa pela prefeitura de São Paulo.

    Bancada evangélica
    O FOLCLÓRICO – Pastor Sargento Isidório: Bíblia sempre na mão e proposta de Dia do Orgulho Hétero (Cristiano Mariz/VEJA)

    “Existem hoje 13 milhões de desempregados; pelo menos 98% deles são cristãos. A nossa pauta é trazer o Brasil aos trilhos do desenvolvimento”, diz o presidente da frente, Silas Câmara. Sua palavra de ordem é “profissionalização”. A frente colocou um representante em cada uma das 25 comissões permanentes da Câmara para monitorar os projetos em discussão, e contratou uma agência de marketing especializada em mídias sociais, que passará a divulgar atividades da bancada. A empresa é a Nativos Comunicação, cujo CEO é Elienai Câmara, filho do deputado (a agência fica no mesmo endereço de outra que tocou a sua última campanha eleitoral). O nepotismo aqui não é ilegal, pois os fundos da frente não vêm da Câmara, e sim da doação de seus membros. Mas Silas Câmara enfrenta uma acusação de peculato: a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao Supremo Tribunal Federal a punição com prisão e multa do deputado, sob suspeita de ter pago com verba da Câmara uma cozinheira, um piscineiro e um motorista que lhe prestavam serviços privados.

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    Silas Câmara tem na ponta da língua o número de projetos de interesse dos evangélicos que sua frente monitora: 1 798. Entre eles está o que torna a homofobia um crime, equiparando-a ao racismo. Uma medida equivalente está sendo julgada no STF e já recebeu quatro votos favoráveis. O julgamento ainda não tem data para ser concluído, graças a uma articulação dos evangélicos com o presidente da corte, Dias Toffoli. O deputado-pastor Marco Feliciano, um dos principais expoentes da bancada evangélica, contou a VEJA que Toffoli chegou a conversar com algumas lideranças evangélicas para pedir que elas não abraçassem as campanhas de críticas ao STF, que propunham, entre outras coisas, a CPI da Lava-Toga. Em troca, sugeriu que adiaria a análise da questão da homofobia. A agenda pública de Toffoli mostra pelo menos quatro encontros com lideranças evangélicas nos últimos meses. Um deles foi com o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-­RJ), que está elaborando um projeto de lei que qualifica homofobia como agravante em casos de homicídio e agressão, mas ao mesmo tempo garante aos religiosos a liberdade para dizer, por exemplo, que relações homossexuais são pecado. Nessa seara, há projetos mais, digamos, folclóricos, como o do Pastor Sargento Isidório (Avante-BA) que propõe o Dia do Orgulho Heterossexual. Autoproclamado “ex-gay”, Isidório — que foi o mais votado na Bahia — ganhou o apelido de “deputado da Bíblia”: está sempre carregando o livro sagrado. “Minha missão é esquentar a frente para ela não virar frente fria”, diz.

    A bancada evangélica não emplacou ministro algum e agora assumiu a posição de não indicar mais nenhum cargo. Damares Alves, dos Direitos Humanos, é evangélica, porém correu por fora, e já avisou que pretende deixar o cargo. Mas que não haja engano: o prestígio político evangélico nunca esteve tão alto. Em abril, num hotel de luxo no Rio de Janeiro, um evento com grandes lideranças evangélicas contou com expoentes de todos os poderes da República. Estavam lá, rezando de cabeça baixa e olhos cerrados ao lado dos pastores Silas Malafaia, Manoel Ferreira e José Wellington, o presidente Jair Bolsonaro; o presidente do STF, Dias Toffoli; o presidente do Congresso Nacional, Davi Alcolumbre; e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, só não foi porque estava em viagem aos Estados Unidos).

    Antes das eleições de 2018, analistas eram céticos ante a perspectiva de que um dia o Brasil tivesse um presidente evangélico: a agenda muito centrada em costumes e questões morais nunca fora fundamental para um candidato viável ao Executivo. Jair Bolsonaro, um católico, mudou esse paradigma. Os políticos evangélicos gostam do presidente, mas já sonham com sua sucessão. “Não surgiu ainda uma liderança evangélica que se destaque no meio e consiga unir todas as denominações. No dia em que isso acontecer, teremos um presidente da República”, garante o pastor Luciano Luna, do núcleo de religiões do PSDB. O céu é o limite.

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    Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633

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