A paulistana Merula Steagall tinha 3 anos quando seus pais receberam a sentença cortante, definitiva e amarga do médico da família: “Desapeguem-se da filha. Ela vai morrer antes de completar 5 anos”. A menina era portadora de talassemia, um tipo raro e grave de anemia. Ao chegar em casa, ela ouviu do pai: “Você gosta de viver? Então, aproveite tudo ao máximo”. Seguiu à risca o conselho. “Passei a minha infância sabendo que poderia partir a qualquer instante. E essa consciência, em vez de me paralisar, me deu um senso de urgência na vida”, diz Merula. Semanalmente, ela se submete a sessões de transfusão de sangue, algumas com duração de até dez horas. Estima já ter recebido sangue de mais de 4 000 pessoas. Jamais falhou um só dia no tratamento. Praticou esportes radicais, como paraquedismo, rali e windsurf. Trabalhou em diversas áreas, como agência de turismo, lojas de moda feminina e importadora de utensílios de cozinha. Formou-se em administração de empresas. Teve quatro filhos. A maternidade é um desafio para a portadora da doença — há sempre a possibilidade de agravamento da anemia durante uma gestação. Tanta vontade de viver, tanta valentia fizeram Merula encaminhar quase todos os seus interesses para o tratamento da doença, com altruísmo cativante.
Em 2000, ela se tornou presidente da Associação Brasileira de Talassemia (Abrasta), hoje instituição de referência internacional. Até então, o problema era praticamente desconhecido dos brasileiros e ignorado pelos governantes. As coisas começaram a mudar no 15º dia após Merula ter assumido o cargo na entidade. A administradora deu um telefonema para Brasília para falar com o então ministro da Saúde, José Serra. Depois de muitas tentativas, conseguiu chegar à secretária. Ao mencionar sua proposta de encontrar Serra, ouviu da funcionária: “A senhora não vai conseguir horário se não disser qual o tema da reunião”. Merula respondeu que só poderia falar pessoalmente e perguntou se ele estaria em Brasília na quarta-feira seguinte. “Sim, mas a agenda do ministro está apertada.” Na quarta-feira, a administradora apareceu no ministério, de surpresa. A secretária lhe pediu que aguardasse em uma sala. Quando a porta do gabinete se abriu, Merula citou o nome de um conhecido do ministro e conseguiu entrar. Contou sobre a existência da Abrasta e tudo o que sabia da doença. Saiu do encontro com o apoio do ministro para a elaboração de um sistema de referência mundial para o tratamento da talassemia. De lá para cá, traçou o mapa da doença no Brasil e levou o tratamento para o Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2016, o Ministério da Saúde lançou um manual inédito sobre a doença, para os profissionais de saúde atuarem na prevenção e tratamento do problema e na reabilitação das vítimas da talassemia. O documento tem orientações técnicas que vão desde os cuidados de enfermagem até o tratamento em si.
“Onde houver 1% de chance, sempre haverá 100% de esforço”
A talassemia é conhecida como “anemia do Mediterrâneo”, pois a maioria dos casos origina-se nos países próximos do Mar Mediterrâneo, como Itália, Grécia, Turquia e Líbano. O nome da doença vem do grego — remete a thalassa (mar). Merula é descendente de gregos. Incurável, a doença tem 200 000 pessoas em tratamento no mundo. No Brasil, são cerca de 600 na versão grave (condição que pede transfusões de sangue regulares). Trata-se de uma mutação genética que leva à malformação da hemoglobina, proteína encontrada nas células responsáveis pelo transporte de oxigênio no organismo. O tratamento consiste em aplacar os principais sintomas da doença, como anemia persistente, distúrbios cardíacos, endocrinológicos e fraqueza. O principal recurso são as transfusões de sangue associadas a um remédio específico.
No início dos anos 2000, uma nova ferramenta representou uma esperança para os portadores: testes genéticos que permitem identificar a talassemia em embriões e interferir para que se desenvolvam de forma saudável. Mas a técnica ainda está longe de ser a solução do problema e tornar-se acessível a todos os pacientes.
As adversidades jamais paralisaram Merula, muito pelo contrário. Em 1998, seu primogênito, Daniel, foi diagnosticado com linfoma, um câncer no sistema linfático. Em busca de recuperação, ela procurou desde cirurgias espirituais até médicos nos Estados Unidos. Daniel hoje tem 25 anos e está curado. Sua história inspirou a mãe a criar, em 2002, uma segunda entidade de saúde de referência no Brasil, a Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale). Os feitos, mais uma vez, foram extraordinários. Graças à atuação da instituição, em 2010 os planos de saúde passaram a ser obrigados a arcar com as despesas dos transplantes de medula óssea. Mais: em 2014, o medicamento rituximabe, usado em um tipo de linfoma, o não Hodgkin, foi incorporado ao SUS.
Recentemente, Merula foi vítima de um efeito raro e dramático do seu problema, o crescimento de uma massa pulmonar — ainda que benigna —, o que a levou a ficar ofegante. A talassemia faz com que a medula óssea, a estrutura que produz sangue no organismo, crie pequenos coágulos que podem atingir os pulmões.
Em 22 de outubro deste ano, Merula completará 53 anos. Ela acaba de escrever uma autobiografia, de 300 páginas, com lançamento previsto para o fim do ano. Parte das vendas será revertida aos projetos sociais pelos quais passou a vida lutando. O que virá depois? “Minha única certeza é a minha disposição para vencer batalhas e fazer jus ao seguinte lema: ‘Onde houver 1% de chance, sempre haverá 100% de esforço’.”
Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602