Será que a gente devia parar de falar ‘a gente’?
“Moro fora do Brasil há quase 30 anos e me choca ouvir até na TV as pessoas falando ‘A gente gosta’ ou ‘A gente vai’ em vez de ‘Nós gostamos’ ou ‘Nós vamos’. Isso é correto ou todos estão falando português errado?” (Gunther Meyer) O uso de “a gente” no lugar de “nós”, traço marcante […]
“Moro fora do Brasil há quase 30 anos e me choca ouvir até na TV as pessoas falando ‘A gente gosta’ ou ‘A gente vai’ em vez de ‘Nós gostamos’ ou ‘Nós vamos’. Isso é correto ou todos estão falando português errado?” (Gunther Meyer)
O uso de “a gente” no lugar de “nós”, traço marcante do português informal, já estava consagrado bem antes de Gunther deixar o país, há trinta anos. De onde virá seu estranhamento? Uma hipótese: pode ter ocorrido desde então uma maior flexibilização no uso da língua, uma extensão do registro coloquial a domínios em que até então ele não era bem aceito – e “a gente” foi junto.
Que se trata de uma forma de expressão com raízes fundas em nossa cultura fica claro quando pensamos numa canção popular clássica como A saudade mata a gente (1939), de João de Barro e Antônio Almeida, com seu estribilho que diz: “A saudade é dor pungente, morena/ A saudade mata a gente, morena”. Ou quando encontramos, recuando ainda mais no tempo, esta frase do escritor português oitocentista Camilo Castelo Branco, que muita gente tomava na época como modelo de uso da língua: “Com estes leitores assim previstos, o mais acertado e modesto é a gente ser sincera”.
A concordância no feminino feita por Camilo – e recomendada por gramáticos tradicionalistas como Domingos Paschoal Cegalla – tem sido preterida faz tempo pela concordância que ignora o gênero do substantivo “gente” para optar por um masculino genérico, em alguns casos, ou para variar segundo o sexo do falante, em outros. O exemplo a seguir foi colhido pelo próprio Cegalla em “Sagarana” (1946), de Guimarães Rosa: “Quando a gente é novo, gosta de fazer bonito…”.
Nem sempre é clara a fronteira semântica entre o “a gente” que significa “nós”, o que significa “eu” e o que apenas busca deixar o sujeito indeterminado (“Quando se é novo…”). Mas o mesmo pode ser dito do próprio pronome “nós” (leia mais aqui).
Convém prestar atenção na advertência que o Houaiss faz sobre “a gente”. Depois de acolher a expressão como substituta do pronome “nós” na linguagem coloquial (“nos usos informais da língua, é comum…”), observa que a concordância verbal “muitas vezes se faz pela primeira pessoa do plural, o que não corresponde à norma padrão”. Ou seja: “A gente é inútil”, tudo bem. “A gente somos inútil”, não.
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