O milagre de ‘Roque Santeiro’
Novela de Dias Gomes e Aguinaldo Silva mesmerizou o país nos anos 1980
Reportagem de VEJA desta semana mostra a ótima fase das novelas brasileiras: “depois de um tenebroso inverno em que não despertaram mais que apatia, os folhetins voltaram a pautar as rodas de conversa, da Amazônia aos Pampas”. Desde 2012, a Globo via despencar o número de espectadores sintonizados em suas tramas. “Pois as ovelhas desgarradas voltaram: o alcance diário das cinco tramas da emissora, de 64,4 milhões de pessoas, retornou ao patamar dos tempos de Avenida Brasil“, registra a reportagem. “Quando as pessoas, em casa ou no boteco, debatem sobre a vida de figuras da ficção, estabelece-se aquela alquimia singular: o Brasil se inebria com o próprio reflexo no espelho da TV.”
Foi nos anos 1970 que a teledramaturgia se impôs como “a grande mania nacional”, como VEJA registrou em reportagem de capa. “Nos bares e lares, nas lojas e estações rodoviárias, em todas as frestas de lazer a telenovela tem dado um jeito de se infiltrar”, dizia VEJA de 10 de setembro de 1975. Perseguidos pela ditadura, autores teatrais haviam migrado para a TV e ajudavam na virada heroica do gênero. Dias Gomes foi um deles. É de sua lavra O Bem Amado (1973), primeira novela em cores do país, e Roque Santeiro (em coautoria com Aguinaldo Silva), que a censura barrou em 1975 e, dez anos depois, quando finalmente foi ao ar, cravou recordes de audiência que provavelmente nunca serão alcançados.
VEJA também dedicou reportagem de capa à febre de Roque Santeiro e acompanhou as gravações da trama estrelada por Regina Duarte (a viúva Porcina), Lima Duarte (Sinhozinho Malta) e José Wilker (o milagreiro Roque Santeiro). “A notável eficácia de Roque Santeiro não pode ser atribuída apenas à criatividade de Aguinaldo Silva ou Dias Gomes, ainda que sejam eles os responsáveis por um enredo enxuto, em que todas as ações são imprescindíveis para o andamento da novela”, dizia a reportagem. “Roque é, antes de mais nada, a conjugação meio mágica do acaso com a máquina de produções da Rede Globo e o talento de uma série de artistas e técnicos que aparecem na frente e atrás das câmeras. Desde a autoria, a novela é um produto híbrido, que passa por centenas de mãos antes de chegar ao vídeo. Só no capítulo 87, o desta quarta-feira, por exemplo, 800 pessoas estiveram envolvidas, formando uma cadeia que ia da estudante Zailda Menezes, 19 anos, uma figurante anônima, à superestrela Regina Duarte, num dos melhores desempenhos de sua carreira.”
O sucesso surpreendeu e intrigou a própria emissora. Leia trecho da reportagem:
Depois de matutar muito sobre o assunto, Daniel Filho, prudentemente, arrisca duas opiniões para justificar a comoção provocada por Roque e de antemão admite que ambas são insatisfatórias. “Em primeiro lugar, trata-se de uma questão mágica, com todos os elementos se casando perfeitamente”, afirma. “Em segundo, a própria Globo mudou, existe um astral novo na emissora, fazendo com que todos ousem mais.” Para uma indústria de entretenimento como a Globo, que obviamente monta sua programação da maneira mais científica possível – usando fartamente as pesquisas que medem o gosto do público – recorrer à “magia” e ao “novo astral” é uma forma elegante de afirmar que, para além do que é projetado com rigor, existem elementos vagos e imponderáveis.
Mesmo as pesquisas, na verdade, esclarecem muito pouco, no caso de Roque Santeiro. Mensalmente a Globo promove enquetes detalhadas sobre suas novelas, usando institutos de pesquisa ou agências de propaganda. Essas pesquisas, que circulam apenas entre um reduzido número de pessoas, revelam quais os personagens preferidos e repudiados pelo público, se a audiência gosta ou desgosta da trama e dos temas e quais os elementos que se sobressaem na novela. Na pesquisa sobre Roque Santeiro do mês passado, o resultado mostrou que o público gostava de todos os personagens, da trama e dos temas e o único elemento que chamava a atenção dos espectadores era o humor da novela.
O humor, portanto, é uma das poucas pistas concretas para explicar o fato de que Roque Santeiro caiu nas graças do público. Não se trata de um humor do tipo Jô Soares ou Chico Anysio, mas de um gênero diferente. “Usei o riso para humanizar os personagens”, diz o criador da história, Dias Gomes. “Não acredito que as pessoas da novela sejam anjos ou demônios acabados. Para mim, os personagens são simplesmente engraçados.” De fato, jamais a Globo mostrou, no horário das 8, uma novela tão hilariante quanto Roque Santeiro, ao mesmo tempo em que toca em alguns temas supostamente perigosos, com a religião, o misticismo popular e a política. Dessa salada, nasce a força da novela.
Em 2013, Aguinaldo Silva escreveu artigo em VEJA sobre o sucesso da novela que chacoalhou o horário nobre. Confira trechos abaixo:
Roque Santeiro era isto: um vento que provocou um frêmito no país já na noite de estreia, e nas noites seguintes soprou cada vez mais forte. Isso podia ser comprovado facilmente pelo som da vinheta que assinalava o começo e o fim de cada intervalo comercial da novela – a de Roque Santeiro era sublinhada pelo tilintar de uma auréola de santo que ficava sobre o título da novela e lembrava o famoso plim-plim dos intervalos da Rede Globo. Durante a exibição de Roque Santeiro, mal vinha o primeiro toque eu corria para a janela da minha casa em São Conrado, no Rio de Janeiro, e ficava esperando que o som do plim-plim ecoasse na minha rua, no meu bairro, na minha cidade… No país inteiro.
Sim, bons tempos aqueles em que, embora ainda estivesse vívido na memória o som das botas dos militares a ecoar nas madrugadas, apesar da censura tenebrosa e das ameaças de processo por causa do que se dizia, escrevia ou fazia, uma telenovela era capaz de conquistar mentes e corações, dizer às pessoas sobre os seus personagens “estes somos nós!” e, assim, se tornar maior que tudo. Não era assim que eu sentia Roque Santeiro na época, quando a pressão de escrevê-la era só o que contava. Mas é assim que a vejo agora, como o momento mágico que foi, ao dar a um povo sufocado a chance de reconhecer, mesmo que numa obra de ficção, sua própria cara.