Reforma e crise militar exibem presidente vulnerável (Leonardo Barreto)
Troca de poder pela preservação do mandato

O presidente Jair Bolsonaro promoveu na segunda-feira (29) uma reforma ministerial focada em garantir sua sobrevivência política e manter algum poder de agenda. Este movimento, embora surpreendente pela sua amplitude, está ligado a eventos anteriores e envolve limites entre os três poderes e a luta pela sobrevivência política de parlamentares e do próprio presidente frente às consequências impopulares do agravamento da pandemia.
I
O primeiro evento é a aprovação de um Orçamento escancaradamente eleitoral. A transferência de recursos de gastos obrigatórios para emendas parlamentares e sua alocação na alçada do ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), cujo volume de recursos disponíveis cresceu mais de 200% para este ano, evidencia antes de tudo um acordo para compensar as dificuldades da pandemia com obras. É seu advogado Rogério Marinho, titular do MDR desde o final do ano passado, razão de seu conflito com o ministro da Economia Paulo Guedes.
Está suficientemente claro que a aprovação da PEC Emergencial antes do Orçamento teve por objetivo preparar a sociedade (e o mercado financeiro) para o que estaria por vir, numa dinâmica “aperta e solta”. Nesse sentido, é possível dizer que há alinhamento entre o Congresso e o Planalto.
II
O segundo evento, no entanto, é mais ruidoso.
Considerando o imenso prejuízo de imagem do presidente Jair Bolsonaro, o Congresso Nacional, por meio dos seus presidentes, Arthur Lira (PP/AL) e Rodrigo Pacheco (DEM/MG), agiu para intervir no Executivo, atendendo aos apelos da sociedade e dos setores econômicos.
Além de impor um comitê de crise, trazendo Bolsonaro para o centro da responsabilidade pelos resultados da sua gestão, exigiram o sacrifício dos ministros Eduardo Pazuello (Saúde), Ernesto Araújo (Exteriores) e de Ricardo Salles (Meio Ambiente). Tudo isso acompanhado por um discurso desconcertante feito por Lira ameaçando Bolsonaro de descontinuidade do mandato em caso de não cooperação.
III
O terceiro evento foi uma reportagem veiculada no jornal Correio Braziliense no domingo (28), com o general Paulo Sérgio, chefe do Departamento-Geral de Pessoal do Exército, agora comandante da Força, sugerindo que o sucesso da instituição na reduzida taxa de mortalidade nas suas fileiras bem inferior à da população em geral (0,13% x 2,5%) se deu em função da adoção de orientações opostas às referendadas por Bolsonaro.
A insatisfação do Planalto culminou na demissão do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, com quem Bolsonaro já tinha uma relação desgastada. Em sua carta de demissão, Azevedo e Silva fez uma acusação velada ao presidente de querer ter relações não institucionais com as Forças Armadas (FA), lembrando o discurso de saída do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, que indicou a vontade da Presidência de interferir na Polícia Federal (PF).
IV
Por último, na Advocacia Geral da União (AGU), houve barulho pelo então titular José Levi Júnior não ter assinado a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que pediu o fim dos lockdowns decretados por governadores (o próprio Bolsonaro assinou o pedido).
Não se sabe se houve recusa de Levi, erro ou uma escolha política feita pelo Planalto, que talvez tenha desejado marcar posição contra os fechamentos ao colocar a assinatura pessoal de Bolsonaro no documento.
Do acúmulo de eventos surgiu a percepção de esvaziamento de poder de Jair Bolsonaro, que é real. Nesse sentido, antes de visar qualquer mudança de rumo do governo, a reforma ministerial é uma tentativa de reafirmar poder.
Mais poderes
André Mendonça deixou o ministério da Justiça e voltou para a AGU. Em seu lugar, foi nomeado o delegado de Polícia Federal Anderson Torres, indicado pelo ex-deputado Alberto Fraga, que tem relação com as polícias militares.
Pode indicar uma tentativa de consolidar a ligação com as forças policiais, considerando que as Forças Armadas buscam uma porta de saída do governo.
Isso fica mais clarodiante da tentativa frustrada do líder do governo na Câmara, Major Vítor Hugo (PSL-GO), de aprovar um projeto de lei que dá ao presidente da República poder para acionar uma ‘ Mobilização Nacional ‘ para combate à pandemia.
A medida só pode ser utilizada em períodos de guerra e daria a Bolsonaro poderes sobre as forças militares, governadores e prefeitos.
Outras mudanças
O novo ministro de Relações Exteriores, Carlos França, desenvolveu toda sua carreira como chefe de cerimonial e é considerado inexperiente por não ter comandado nenhuma embaixada. Sua escolha indica que Bolsonaro quer reservar essa área sob seu total controle.
Em um movimento que deve ser observado atentamente, o general Luiz Ramos deixou a função de Secretário de Governo, que faz a administração política do Planalto junto ao Legislativo e foi para a Casa Civil. Isso pode ser interpretado como uma parte do movimento de desembarque do Exército da linha de frente do governo.
No lugar de Ramos, assume a deputada Flávia Arruda (PL/DF), que foi presidente da Comissão Mista do Orçamento. Trata-se de uma concessão ao deputado Arthur Lira que passa a controlar o processo político de relação com o Planalto de ponta a ponta. Alguma compensação ao Senado Federal pode ser gestada.
Por último, a ida de Braga Netto para o ministério da Defesa é compreensível na medida em que ele é tido por alguns como um “apagador de incêndios”.
Entre fontes ouvidas, não há risco de o Exército adotar uma postura não institucional e favorecer o governo. No entanto, está claro que um rearranjo de hierarquia será necessário, na medida em que, por mais enfraquecido que esteja, Bolsonaro ainda é o seu comandante em chefe e a cadeia de comando precisa ser mantida, mesmo que com limites.
Conclusão
Uma análise da reforma ministerial mostra um presidente esvaziado e preocupado com sua sobrevivência. O Exército, traumatizado com a experiência de Pazuello, procura formas de sair de cena. A pouca expressão do novo chanceler, o vínculo pessoal do titular da Justiça com a família Bolsonaro como sua principal credencial e a busca de lealdade na AGU reforçam a sensação de um presidente fragilizado.
Nesse sentido, as trocas dizem pouco sobre reposicionamento de políticas públicas (com exceção de Marcelo Queiroga na Saúde, que tem surpreendido positivamente seus interlocutores pelo domínio do assunto pandemia e pela aparente autonomia em relação a Bolsonaro).
Bolsonaro é o retrato de um presidente que se esforça para ganhar tempo até que o pior da pandemia passe e abra condições para novas ofensivas políticas. O futuro, nesse caso, é curto.
Até lá, o governo funciona sob uma intervenção do Legislativo, no momento mais próximo que se chegou de um regime parlamentar, com esvaziamento do poder de fato de Jair Bolsonaro, em um acordo que sugere uma troca de poder pela preservação do mandato.
Leonardo Barreto é doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB); https://capitalpolitico.com/