Pode acontecer com o melhor dos atores: de tanto viver o mesmo papel todos os dias, de tanto repetir as mesmas falas, de tanto desfrutar dos êxitos e chorar das dores do personagem que representa, renuncia à própria identidade. E assim quando termina a função e vai para casa, não é mais o artista que apenas deu duro para ganhar a vida como um trabalhador qualquer. Segue sendo o personagem que se recusa a sair de cena.
Foi Lula – não Luiz Inácio da Silva – que ocupou ontem à noite o palco montado na Avenida Paulista para dizer aos manifestantes, ali, reunidos o que eles não cansam de ouvir, e depois vão embora satisfeitos por ter ouvido. Lula disse que é inocente, que não existe uma só prova de que tenha cometido crimes, que ao condená-lo a Justiça condena as conquistas sociais dos seus governos, e que de novo será candidato a presidente da República.
Repetiu os ataques aos mesmos alvos – às elites perversas que não querem abrir mão de nada, à Rede Globo que lidera um complô mediático para impedi-lo de disputar as próximas eleições, aos juízes empenhados em mandá-lo para a cadeia. E, é claro, comparou-se a heróis famosos. A Tiradentes, preso, esquartejado, e depois promovido à condição de patrono da República. E a Nelson Mandela, símbolo da luta contra a discriminação racial.
Ameaçado de ir parar no xilindró nos próximos 40 ou 60 dias, e a começar a cumprir pena de 12 anos em regime fechado, Luiz Inácio da Silva está cada vez mais careca de saber que a trajetória política de Lula está chegando ao fim. Até há pouco, nunca antes na história deste país um presidente da República fora denunciado por corrupção – Temer foi. Até ontem, nunca antes um ex-presidente da República havia sido condenado por crime comum – Lula foi.
É impensável que, por artes e manhas de manobras judiciais, ele possa driblar o que está escrito na lei aprovada pelo voto unânime da Câmara dos Deputados e do Senado, e sancionada sem vetos pelo presidente da República. Em tempo: o presidente era ele. E seu partido celebrou a Lei da Ficha Limpa como o instrumento mais avançado de combate à corrupção. Quanta ironia! Lula candidato seria a desmoralização da Justiça brasileira e, por tabela, do país.
Se comparado aos demais processos que Lula responde, o que trata do tríplex 164-A do Condomínio Solares, na praia do Guarujá, em São Paulo, sempre pareceu o mais inocente, uma travessura de criança, sem potencial de causar dados irreversíveis às pretensões de ninguém. Lula mente quando diz que já esperava ser condenado pelo tribunal de Porto Alegre. Por 3 x 0, não esperava. Com os termos duros usados pelos juízes, jamais esperou.
Em fevereiro, o juiz Sérgio Moro deverá condená-lo no processo do sítio de Atibaia, também em São Paulo. As empreiteiras Odebrecht e OAS reformaram o sítio para uso de Lula e de sua família. Se nunca se hospedou no tríplex, se ali só pôs os pés uma única vez, Lula hospedou-se no sítio pouco mais de cem vezes desde que deixou a presidência da República. O escudo do Corinthians, seu time, está no copo em que ele bebia no sítio. Suas iniciais, na roupa encontrada lá.
O sítio é um santuário com as impressões digitais de Lula e de sua família por todo canto. Nos pedalinhos com os nomes dos netos. Nas caixas de charutos que mais tarde desapareceram ou foram resgatadas por seu dono. Na vasta e bem fornida adega com os vinhos que Lula recebeu de presente, pois jamais meteu a mão no bolso para comprar uma só garrafa. Na torre de celular plantada nas redondezas do sítio para facilitar as comunicações. Que mais?
Atibaia é um auto de delação a céu aberto, explícito, minucioso e sem nenhum subterfúgio. Lula teve a oportunidade de confessar que o havia recebido como doação de empresários amigos e em reconhecimento aos relevantes serviços prestados por ele ao país. Quem sabe não teria colado? Atibaia é uma prova, com o tamanho de não sei quantos hectares, das relações promíscuas e criminosas de Lula com os que mais se beneficiaram dos seus governos.
Trate o PT de se apressar à procura de um novo candidato. O que tinha foi ontem ferido de morte.