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Declaração de guerra no peronismo: Cristina quer escalpo de Fernández

Nada como uma bela derrota para trazer à tona as inevitáveis contradições internas entre a criadora e sua agora aturdida criatura

Por Vilma Gryzinski 17 set 2021, 07h51

“Não sou eu que põe em cheque o presidente, é o resultado eleitoral”. Com seu habitual estilo deixa que eu chuto, Cristina Kirchner enfiou o salto agulha no coração metafórico Alberto Fernández , de quem exige que renove os votos de vassalagem e faça tudo o que ela quer – mais auxílio emergencial, menos ajuste fiscal e aumento de aposentadorias, mesmo que isso arrombe as contas já estropiadas. Também exige as cabeças dos ministros que acha responsáveis pela estrondosa derrota da Frente de Todos, a coalizão peronista, na eleição primária de domingo.

Como o presidente ungido e eleito por ela vacilou, Cristina fez uma manobra dramática, bem a seu estilo: mandou “seus” cinco ministros saírem do governo. Também pediram demissão quatro ocupantes de altos postos que respondem diretamente à ex-presidente.

Diante de uma chefa cuspindo fogo e queimando os navios, Alberto Fernández pretendeu exibir firmeza na tormenta, equilibrando-se perigosamente em cima de muro do qual só pode descer dinamitando a autoridade que lhe resta.

“A gestão continuará como eu considerar conivente, para isso fui eleito”, tuitou. “Continuarei garantindo a unidade da Frente de Todos com base no respeito que nos devemos”.

Se pudesse fazer isso, até que não estaria tão aturdido. O problema é que Alberto Fernández está numa posição impossível: enfraquecido pela derrota eleitoral dos peronistas, o que projeta um resultado ruim para a eleição parlamentar de 14 de novembro, e desmoralizado diante da sua santa – ou seu oposto – padroeira.

Cristina Kirchner escolheu Fernández para chefiar a chapa presidencial, contando que tinha uma imagem menos desagregadora do que ela própria. Deu certo, com uma boa ajuda do fracassado governo de Mauricio Macri.

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Nem era preciso conhecer detalhes das violentas lutas internas do peronismo para ver que em algum momento criadora e criatura entrariam em choque. 

O momento chegou e não está sendo nada bonito. A ruptura só não é definitiva porque as duas alas, cristinista e albertista, necessitam-se mutuamente. No caso de Cristina, a necessidade é existencial: só o mandato como vice-presidente impede que seja presa em razão dos vários processos por corrupção que enfrenta. Reformar o Judiciário como quer, dobrando-o às suas exigências, é a prioridade que ela pode ver se dissolver.

Alberto Fernández não está numa posição muito melhor. Sem o apoio do kirchnerismo, fica solto no espaço, agarrado a um governo desastroso em todos os sentidos, com pandemia, inflação, moeda em putrefação, isolamento internacional e aumento espantoso da pobreza – para ficar só nos problemas mais urgentes. 

Se ceder a Cristina, estará completamente desmoralizado e o rumo mais esquerdista que ela exige implodirá o que resta de esperança de gestão menos desastrosa da economia. Se não ceder, naufraga num turbilhão.

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As contradições internas do peronismo têm uma tumultuada trajetória histórica. Por ser um movimento altamente heterogêneo, muitas vezes abrigou correntes de esquerda, de direita e de centro. O maior choque entre as diferentes alas aconteceu quando Juan Domingo Perón voltou do exílio, depois de 18 anos, em 1973.

Em lugar da celebração eufórica, como se condensasse uma três copas do mundo num único evento, as alas conflitantes prepararam-se para o extermínio mútuo. Armas levadas em ambulâncias abasteceram militantes da Juventude Peronista e dos Montoneros. Sindicalistas e figuras de direita ligadas ao entorno mais próximo de Perón ocuparam o palanque armado num cruzamento da estrada para o aeroporto de Ezeiza.

O confronto terminou com treze mortos, mais de 300 feridos e um ódio mútuo que se prolongou durante o curto e sombrio período em que Perón voltou à presidência e continuou depois que sua viúva, Isabelita, assumiu, como vice, o lugar deixado pela morte do marido. Foi um dos principais fatores para o tão anunciado golpe militar de 1976. A esquerda armada acreditava que o golpe acabaria provocando sua sonhada revolução – um dos muitos delírios desse gênero.

Estes episódios terríveis ajudam a compreender como a atual crise interna do peronismo é apenas um soluço episódico e, teoricamente, pode ser superada.

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Falando ao Página 12, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, do alto de seus 86 anos, deu até receita para a superação:

“A Argentina é um país maravilhoso pelos recursos que tem, mas está descompensada. O sistema político tem que dialogar muito mais, não há democracia sem diálogo, e o diálogo significa baixar os decibéis, não ficar se xingando pela imprensa e conversar mais”.

Mujica apelou até a Martín Fierro, a obra fundadora da argentinidade profunda, para pedir o fim do massacre interno.

“Recomendo ler o Martín Fierro, os irmãos se unam porque se não são devorados pelos de fora. O que a Argentina mais precisa é de unidade, unidade com diversidade, mas unidade. Não é o momento para brigas internas”.

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As chances de que seus conselhos sejam ouvidos são próximas de zero. O impulso em direção da autodestruição é uma das características gravadas no DNA político argentino.

“Os peronistas não são nem bons nem maus, são incorrigíveis”, provocava Jorge Luis Borges. 

Cristina Kirchner e Alberto Fernández estão tendo a oportunidade de contestar a frase lapidar do mestre e seus próprios impulsos, mas é difícil que a aproveitem.

“Como não sou mentirosa e muito menos hipócrita (nunca digo em público o que sustento em privado e vice-versa), devo mencionar que durante o ano de 2021, tive 19 reuniões de trabalho em Olivo com o presidente da nação”, fuzilou Cristina na carta aberta a Fernández. “Nós nos vemos ali e não na Casa Rosada por sugestão minha e com a intenção de evitar qualquer tipo de especulação e operação mediática de desgaste institucional”.

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“Cansei de dizer” que o presidente estava apoiando “uma política fiscal equivocada que estava impactando negativamente a atividade econômica”.

“Quando tomei a decisão de propor Alberto Fernández como candidato a presidente de todos os argentinos e argentinas, o fiz com a convicção de que era o melhor para minha pátria”.

“Só peço ao presidente que honre aquela decisão”.

Tradução: ela manda e “Alberto” tem que obedecer. Caso contrário, ferrou.

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