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Livro reúne a produção teatral da psicanalista Betty Milan

  Simone Costa Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Florbela Espanca, Adélia Prado. Estes são alguns dos poetas, todos de língua portuguesa, que a psicanalista e escritora Betty Milan reuniu em sua peça Paixão, de 1994, a primeira das seis que ela escreveu e que acabam de ser reunidas no livro Teatro […]

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 31 jul 2020, 01h33 - Publicado em 25 abr 2015, 19h50

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Simone Costa

Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Florbela Espanca, Adélia Prado. Estes são alguns dos poetas, todos de língua portuguesa, que a psicanalista e escritora Betty Milan reuniu em sua peça Paixão, de 1994, a primeira das seis que ela escreveu e que acabam de ser reunidas no livro Teatro Lírico e Teatro Dramático (Giostri, 208 páginas, 42 reais). Na parte do Teatro Lírico, as peças Paixão, Paixão de Lia e O Amante Brasileiro tratam das ilusões e desilusões amorosas. No Teatro Dramático, a autora explora caminhos diversos com Brasileira de Paris, Adeus Doutor e Dora Não Pode Morrer.

Paixão, na verdade, é a adaptação de um capítulo do livro E O Que É Amor?, publicado pela psicanalista em 1983. Transformado em um monólogo a pedido da atriz Nathalia Timberg — que atualmente vive Estela, par romântico de Teresa (Fernanda Montenegro) na novela Babilônia — o texto recebeu elogios da crítica nas várias vezes em que Timberg o levou aos palcos, a última delas no ano passado. Difícil não gostar de um texto que traz fragmentos de Pessoa (“Desenganemo-nos, meu amor, da vida e dos seus modos. Fujamos a sermos nós…”), de Drummond (“Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”) e de tantos outros poetas consagrados. Ainda que a reunião de estilos diferentes cause estranhamento e uma sensação de falta de unidade, Betty Milan conseguiu no conjunto da peça costurar os trechos, preenchendo-os com textos seus e dando um ritmo que parece ser o de seguir o curso de muitos amores, do encontro à paixão, passando pelo ciúme e o desencontro até o que resta, que é a rememoração de algo já terminado.

Paixão de Lia e O Amante Brasileiro, as outras duas peças que compõem o Teatro Lírico da autora, também são adaptações de textos anteriores, mas de romances lançados por ela em 1994 e 2003, respectivamente. A primeira traz as fantasias da protagonista, Lia, que incluem a de ter um amante, viver uma experiência em um bordel, ser uma cortesã, apaixonar-se por outra mulher e ter um filho. Ao som de Billie Holiday, Carlos Gardel e Edith Piaf, fantasiar parece ser o único meio de realização erótica da protagonista. Já em O Amante Brasileiro,  encenada em 2004 pelo Teatro Oficina, a personagem Clara, uma jornalista carioca, consegue ir além do discurso amoroso e conquistar Sebastien, um parisiense casado, mas que há cinco anos não transa com a mulher. É por meio da troca de e-mails entre os dois, cada um de um lado do Atlântico, que o leitor acompanha o desenrolar desse romance.

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Mesmo que a poesia e a paixão sejam temas envolventes, é no Teatro Dramático que está a melhor produção de Betty Milan, onde ela mostra amadurecimento como autora. O texto Brasileira de Paris, de 2005, foi o primeiro escrito diretamente para os palcos e também o que inaugurou a sua produção no teatro dramático. Assim como desejo, fantasia e paixão são temas recorrentes da psicanalista — bastante abordados, por exemplo, em seu Consultório Sentimental, coluna que assinou no site de VEJA entre 2007 e 2012 — as críticas ao machismo, que nega a concretização do desejo feminino, e as reflexões sobre o ideal libertino, que por outro lado exclui o apego e o amor, também fazem parte de seu repertório e são essas questões que dão o tom de Capa_Teatro-Lírico_betty-milanBrasileira de Paris. A peça, uma sátira, trata de duas mulheres na capital francesa: uma atriz paulista, que vive com um libertino francês, e sua faxineira cearense, casada com um português que a espanca frequentemente. As duas têm em comum o fato de terem amantes que as fazem fantasiar com um lugar distinto daqueles em que vivem com seus indesejados maridos. É no diálogo entre as duas que cada uma consegue entender melhor a própria situação.

Escrita em 2008, Adeus Doutor é o texto mais interessante do livro. Na peça, a brasileira Seriema decide ir para a França depois de dois abortos espontâneos que culminaram em sua separação do marido. Em Paris, ela começa um processo de análise com um psicanalista francês e é por meio das sessões com ele que o leitor desvenda quem é a personagem. O texto traz muitos aspectos autobiográficos. Como Betty, a personagem Seriema é descendente de libaneses e cresceu sem conseguir se identificar com as mulheres de sua família, que eram desvalorizadas por todo o grupo, inclusive por elas mesmas, caso o primeiro filho não fosse homem. “Quando eu nasci, ela (a avó) disse: ‘Bonita criança… pena que seja uma menina’. O meu nascimento foi uma decepção, ela queria um homem, um verdadeiro primogênito”. Sua própria história, Betty contou em Carta ao Filho – Ninguém Ensina a Ser Mãe (Record, 2013), onde também narrou a ligação profunda que tinha com o pai, seus anos de análise com Jacques Lacan e como a França era a principal referência de seus ancestrais. Todos esses elementos fazem parte da realidade de Seriema. Além de acompanhar o desenrolar da análise sob o ponto de vista da personagem, o leitor também vê o curioso olhar do psicanalista sobre a sua paciente.

O último texto do livro, Dora Não Pode Morrer, traz como protagonista a médica Dora, uma atleta que leva uma vida saudável, sem nunca ter ficado doente, até que um médico lhe recomenda um tratamento para um problema na tireoide, algo que pode se agravar. Dora, no entanto, negligencia a recomendação médica e só volta a se tratar quando descobre que tem um tumor maligno. Por trás de tudo, diagnóstico, cirurgia, radioterapia, Betty Milan foca também outra questão, a subjetividade de quem está doente e a importância disso para a cura. Durante os dias no hospital, Dora se dá conta de que não nasceu para morrer, algo que sua mãe não conceberia.  Aqui também um ponto autobiográfico da psicanalista, que em Carta ao Filho conta que cresceu com medo de adoecer e morrer porque isso poderia lhe custar o amor da mãe, que a teve depois de perder o primeiro bebê. Em um diálogo com a irmã Vera, Dora diz que a mãe “nunca suportou” que ela adoecesse. “Morrer seria matar… matar a nossa mãe.” Dora Não Pode Morrer estreia no Itaú Cultural, em São Paulo, em agosto.

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Confira os fragmentos que Betty Milan escolheu para VEJA Meus Livros:

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Paixão de Lia – Teatro Lírico 

LIA — Mesmo nos dias de quarto minguante, com Ali eu verei a lua cheia e ele estará de smoking sempre, ainda que esteja vestido com simplicidade. Como poderia a noite em que o meu homem chega não ser de gala? Como poderia não estar eu de longo esvoaçante? De arminho nos ombros ou com um rabo de sereia? Champanhe da sua boca para a minha.

A VOZ — Champanhe (A Voz levanta, abre a champanhe que está em cima da mesa, despeja um pouco num copo, bebe um gole e beija Lia na boca)

LIA — Champanhe e a língua abrupta com que ele me fará fechar os olhos, me deixará sem nenhuma palavra que não seja Ali. Ficar enfim sem palavras e bendizer calada o fato de nada poder dizer. Ouvidos eu então só terei para o silêncio e para “My Man” na voz mareada de Billie Holiday.

A VOZ — My Man.

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LIA — Que Ali me beije os lábios, me envolva e escorregue com a língua até a garganta. Que ele me satisfaça a primeira gula. Ponto, parada. Meia dose de conhaque Lia quererá? Licor de maracujá ou creme de menta? Seguir no ritmo dele, passo a passo, entre azaleias. Colher uma e, com a pétala, acariciar a sua face. Ficará querendo comigo se ausentar. Não iremos a Roma ou a Paris, pois no Tibre ou no Sena não há nenhuma ilha onde possamos estar inteiramente sós. Queremos dunas tropicais para que a nossa hora seja só nossa.

A VOZ — Só nossa.

LIA — Um lugar onde o céu aparecerá através da copa de um buriti e o silêncio será para ouvir as ondas do mar, esquecer que o nosso tempo é o tempo dos mortais.

Música.

LIA — Me beije, me envolva e se afaste para, olhando, me apalpar o seio da direita, beber depois o mel no seio esquerdo, o do coração. Me prenda o mamilo entre os dentes, deixando que eu, entreaberta, acaricie com a alamanda o meu botão.

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 A Voz entra silenciosamente em cena, entrega uma flor para Lia.

A VOZ — A alamanda, a flor…

LIA (Pega a flor e se roça com ela) — Deslembrada do que não sejamos eu e ele, entregue à boca dele e ao meu roçar, desejando que ele adie o gozo e se satisfaça com o adiar. Mel de acácia no rego dos seios e nas pétalas da rosa entreaberta. (Lia tira, uma a uma, as pétalas da flor) Perfumar assim a língua dele, prometendo ser flor de laranjeira depois. Ser todo dia outra e com isso escapar ao tempo. Lia, Lúcia ou Lia Lúcia para beber na Fonte de Juventa. Apegada ao que sou, eu logo morreria. (Lia se levanta abruptamente) Um dia, o vestido colante, negro. Noutro, de branco transparente. Às vezes, de cabeleira solta, auréola de cachos. Outras, de peruca ruiva, um anjo imprevisível, do bem e do mal.

A VOZ — Um anjo do bem e do mal.

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Música.

LIA (Senta-se no divã) — O só dedo nos meios e ele me abrirá a porta do paraíso. Lover man. O torno contínuo e nós sobrevoaremos o areal ao som de uma música nunca ouvida. “Lia”, ele me diz, e me beija com a boca umedecida na rosa. O sumo que ele me oferece é o das entranhas. Bebe, mulher, as cores do arco-íris e vem comigo ver o Hudson, atravessar o Central Park. Ajoelhar no pequeno parque que o grande abriga, Strawberry Fields, onde Yoko Ono perambula invisível à procura de Lennon, a do cabelo negro cobrindo a nudez, dos olhos vidrados de paixão e das mãos para o céu.

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