Violência, periferia e “infracidadania”
Davi Lago afirma que a trajetória do Estado brasileiro é notadamente marcada pela exclusão dos pobres e marginalizados de garantias legais e sociais
No enfrentamento da violência brasileira é necessário ressaltar a promoção da igualdade enquanto valor democrático essencial. Sem uma pedagogia da igualdade o país jamais superará suas carnificinas. Infelizmente, o famoso ditado “o homem é o lobo do homem” de Plauto (registrado na obra Asinaria, II, 4, 495), retomado por Hobbes (na dedicatória de Do Cidadão e no capítulo XIII de Leviatã) permanece válido para sintetizar grande parte do noticiário brasileiro. De fato, o Brasil é o país onde a população mais teme a violência no mundo conforme o Global Peace Index 2021. Embora a Constituição Federal de 1988 garanta o direito fundamental de ir e vir com segurança para todos, na prática, o país registra mais assassinatos que zonas de guerra. Ano passado foram 43.892 assassinatos segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Especialmente as regiões periféricas das metrópoles testemunham atrocidades recorrentes como a morte de Kathlen Romeu, 24 anos, grávida de um bebê de quatro meses, baleada no último dia oito no Complexo do Lins na capital fluminense em meio a um tiroteio envolvendo policiais e traficantes.
As periferias brasileiras não se tornaram matadouros de um minuto para o outro. As fontes deste banho de sangue passam pela brutalidade da escravidão do período colonial e monárquico. Keila Grinberg, em sua pesquisa sobre punições físicas no Brasil escravocrata, afirma que “os castigos infligidos aos escravos eram prerrogativas dos senhores, praticamente uma obrigação, reconhecida e corroborada pelos costumes e pelas leis”. Crimes cometidos por escravos eram punidos de maneira diferente dos crimes cometidos por pessoas livres. Este ethos de dois pesos e duas medidas na garantia de direitos e aplicação da lei permanece até hoje. Embora detenham direitos constitucionais, os habitantes de áreas carentes são tratados como “infracidadãos” ou “cidadãos de segunda classe”. A trajetória do Estado brasileiro é notadamente marcada pela exclusão dos pobres e marginalizados de garantias legais e sociais mínimas para a sobrevivência física, psíquica e política. No Brasil, raramente “nós” significa “todos nós”. Na esmagadora maioria das vezes o “nós” exclui o sofrimento dos vulneráveis. Susan Sontag afirmou que “nenhum ‘nós’ deveria ser aceito como algo fora de dúvida, quando se trata de olhar a dor dos outros”.
Portanto, a transformação do infausto quadro de violência brasileira, sobretudo nas periferias, passa necessariamente por uma mudança de valores na própria sociedade brasileira. É necessário alimentar o sentimento de igualdade entre todos os cidadãos e cidadãs sem exceção. Uma sociedade edificada sobre a desigualdade é incapaz de estabelecer modos mais civilizados de convivência. Antes da igualdade ser um fim ou um meio, ela precisa ser um axioma estabelecido na comunidade. Igualdade é mais que uma meta programática ou uma diretriz de política pública, é um valor. Precipuamente nas democracias constitucionais, a igualdade é um valor indispensável. As pessoas lutam por valores que compartilham. Assim, é tarefa de cada cidadão brasileiro compreender, aderir e promover o valor da igualdade. Esta tarefa é impossível ao Estado porque o Estado é uma abstração, uma ficção jurídica. O Estado não ama, não sente, não pensa, não se importa. Mas o Brasil não é uma máquina impessoal, o Brasil somos nós – todos nós.
* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo