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O suco que me fez perder algumas noites de sono

A história do atleta Daniel Guedes, que foi pego no doping por causa de um suco de graviola

Por Eduardo Rauen
Atualizado em 22 out 2020, 13h45 - Publicado em 22 out 2020, 12h59

Há muitos anos cuido de alguns atletas profissionais como Médico do Esporte e Nutrólogo, duas das minhas especialidades. O atendimento vai desde o planejamento nutrológico até todo o cuidado com treino, performance, sono, descanso, adequação dentro de casa junto à família e o primordial sempre: o cuidado com a saúde!

Em maio de 2019, um desses atletas profissionais me ligou informando que havia “caído no doping”. Isso foi para mim um grande espanto! Porém, pedi a ele calma, que isso seria improvável. Na verdade, tratar de um atleta é algo desafiador e de extrema responsabilidade como profissional que somos.

Isso porque o atleta profissional está sujeito a controles rigorosos de tudo aquilo que utiliza, desde medicamento para tratar uma dor articular, cosméticos, remédios para febre, e até mesmo substâncias que são consideradas proibidas pelo Comitê de Controle de Doping, a Agência Mundial de Controle de Doping – WADA (World Anti-Doping Agency).

Bom, voltando ao caso do suposto doping, o atleta Daniel Guedes (informo o nome pois ele me autorizou a tratar desse assunto), já vinha sendo atendido por mim há alguns anos. Até mesmo para trocar o feijão que ele comia ele me ligava: “Doutor, posso comer feijão preto no lugar do feijão carioca”?

Quando me informou que havia testado positivo para o doping, eu pedi que me enviasse o documento. Lá constava uma substância denominada “higenamine/ou higenamina”, proibida pela WADA e que, se constatada na urina do atleta, configuraria doping (uso de substância que poderia alterar a sua “vantagem” em relação a outro atleta).

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Disse a ele para aguardarmos a contraprova, pois poderia ser haver testagem errônea. Contudo, a segunda prova/contraprova também veio positiva. Quando um atleta cai no doping, passa um filme em nossa mente. Buscamos entender se poderia haver alguma substância, alimento, cosmético, medicamento que pudesse ter causado isso. Com a contraprova positiva, testamos as amostras de suplementos alimentares que o atleta vinha fazendo uso.

Importante também informar aqui, que sempre que utilizamos algum suplemento como whey protein, palatinose etc, temos o cuidado de averiguar se a empresa que vende esses produtos possui um selo antidopagem. Isso porque, na fábrica onde se manipulam os produtos para fazer o envasamento, pode haver algum resquício de outra substância no maquinário e essa substância pode ser envasada juntamente com aquela permitida, como no caso de alimentos com glúten e sem glúten – isso se chama “contaminação cruzada”.

Em um primeiro momento desconfiamos disso. Fizemos os testes nessas amostras (sempre guardamos uma amostra do lote adquirido pelo atleta) e veio negativo para higenamine(a) ou para qualquer outra substância dopante.

A partir daí, iniciou-se uma busca incansável por detalhes que poderiam fazer com que isso tudo pudesse ser esclarecido. Aí iniciei uma investigação bibliográfica e científica: onde mais poderíamos encontrar essa tal higenamine?

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Após algumas pesquisas e noites de insônia, constatei que ela poderia ser encontrada na fruta do Conde ou na Atemóia, ou até mesmo em um cosmético de determinada marca. Liguei para o atleta e perguntei se ele havia comido uma dessas frutas ou se havia usado um determinado creme corporal. Ele me disse bem assim: “Doutor não uso nada de creme não, e também nem gosto dessas frutas, ma a única coisa estranha que eu tomei no dia do jogo foi um suco de graviola que tinha no restaurante do hotel em que estávamos hospedados!”

Opa! Tínhamos aí um início forte para uma nova investigação: será que a graviola também tem essa substância assim como a fruta do Conde? Nada disso existia na literatura, e isso sim seria um grande desafio.

Para mim estava claro, naquela hora, que a presença da substância na urina do atleta foi proveniente do suco de graviola que ele havia ingerido horas antes. Mas precisávamos informar isso junto ao processo e, de alguma forma, provar a inocência do jogador. O advogado por ele contratado, um especialista em Direito Desportivo, Dr. Bichara Neto, logo contratou um químico que selecionou 12 voluntários e fez com que ingerissem o suco de graviola e, após determinado período, colhessem a urina para averiguar, em laboratório, se havia a presença da higenamine.

E não é que os voluntários que ingeriram o suco de graviola testaram POSITIVO para higenamine! Iniciou-se assim a linha de defesa do atleta. Ficamos muito felizes e animados. O atleta era de fato inocente.

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Mas veio o primeiro julgamento e nada disso ficou claro para os julgadores. O atleta foi condenado em primeira instância. Inclusive um dos julgadores chegou a dizer que, ele que era de origem nordestina, sempre tomou suco de graviola e que não poderia concordar com essa tese de defesa. Um banho de água fria… O jogador foi suspenso dos jogos e dos treinos.

Veio o segundo julgamento agora em 2020, durante a pandemia. O julgamento foi on-line e participei como testemunha, uma vez que além da minha convicção pela inocência do atleta, também vinha fazendo o acompanhamento de todo o drama por ele vivido durante todos esses meses. No segundo julgamento, foi sentenciado a 8 meses de suspensão. Como o atleta já estava há 10 meses suspenso, já teria cumprido a pena.

Ficamos felizes pois ele poderia voltar a jogar, mas ao mesmo tempo, com aquela sensação de que não havia sido absolvido de algo que não cometeu, ou seja, não havia feito uso da substância como forma de adquirir vantagem sobre os seus adversários.

Todavia, o processo ainda tinha mais uma instância e a parte contrária recorreu, levando o caso à última instância desportiva. O drama continuou e aqui ouvi do atleta um desabafo… passou tudo pela cabeça dele, até parar de jogar futebol aos 26 anos de idade.

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Um mês de angústias, medos, incertezas. Até que chegou o dia do julgamento e, finalmente, a tão sonhada absolvição.

Daniel foi absolvido da acusação de doping. Sua inocência e boa índole ficaram comprovadas! Como consequência do caso, a WADA irá financiar um estudo de alto valor econômico para avaliar essa substância (higenamine) e com isso, rever a listagem no que se refere a esse componente.

Trata-se de um caso inédito no esporte. O caso de uma substância encontrada em uma fruta que é originária na América Central, mas que pode ser encontrada em outros continentes como a África e a Ásia. Isso precisa ser realmente tratado com muito cuidado, pois o simples fato de ingerir um alimento, pode causar um grande dano na carreira de um atleta. Até que a inocência seja comprovada, meses ou anos podem passar e, com isso, penalizar de forma irreversível a carreira de alguém.

Graças ao caso em concreto relatado, conseguimos provar a inocência e com isso mudar o rumo da história do esporte no que diz respeito a essa substância. Muitas vezes a dor do próximo vem para trazer benefício para todos. O Daniel precisou passar por tudo isso, mas venceu. A verdade venceu! E a fé que o guiou até aqui pôde, no final, mostrar que o caminho da verdade é sempre o melhor e sempre prevalecerá, custe o que custar!

Eduardo Rauen
(VEJA/VEJA)
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