“Você Não Estava Aqui”: uma família uberizada – e destruída
Sempre devastador, e em vários momentos quase sublime, o filme do veterano diretor inglês Ken Loach trata de soluções desesperadas em momentos difíceis
Na entrevista com o gerente do depósito, Ricky (Kris Hitchen) conta que já fez de tudo para sustentar a família, até cavar túmulos no cemitério. Mas viver de seguro-desemprego, isso nunca. “Tenho o meu orgulho”, diz ele, marcando um ponto com o novo chefe – que insiste que não é chefe, é “colaborador”: Ricky vai ser dono do seu nariz, promete ele. Não vai bater cartão, e sim “estar à disposição”. Pode alugar uma van da empresa para fazer entregas, ou pode comprar a sua própria. Quanto melhor se sair, melhores as rotas que vai pegar e mais dinheiro vai ganhar. Mas que fique avisado que todos os riscos são por sua conta, e que o leitor de códigos que registra quais pacotes entraram na sua van e onde e quando saíram dela vai governar a sua vida. Ricky sonha: sempre trabalhou duro, tem iniciativa, tem garra, e agora não vai ter patrão. Em dois anos, terá sanado suas dívidas e poupado o suficiente para dar entrada em uma casa e livrar-se do aluguel. Abbie (Debbie Honeywood), a mulher de Ricky, é cuidadora de idosos, e faz ela própria uma jornada de mais de doze horas por dia, com clientes (palavra que ela odeia) espalhados por toda a cidade de Newcastle. Vender o carro para comprar a van significa muitas horas de ônibus para lá e para cá, e menos tempo ainda com Liza Jane (Katie Proctor), a filha de 11 anos, e Seb (Rhys Stone), o filho adolescente que está perigosamente saindo dos trilhos. Mas que remédio: é preciso tentar um futuro menos sacrificado. Você Não Estava Aqui, porém, é a história de como a uberização do emprego torna esse sonho não mais do que uma miragem: pode ser inevitável, pode ser a única alternativa em um momento difícil – mas é um retorno à exploração selvagem de 100 anos atrás.
O diretor inglês Ken Loach, de 83 anos, é um dos últimos socialistas sinceros do planeta, que acreditam em um regime igualitário não como um projeto de poder, mas como uma questão de decência humana. Acho que os fatos desmentiram Loach absolutamente durante o século 20 e nos regimes socialistas que ainda restam no século 21, mas é importante ressaltar, primeiro, que os sentimentos dele são impecáveis, e, segundo, que ele não inventa as histórias que conta em seus filmes – ele as colhe no dia a dia, e então as filma com um naturalismo verdadeiro, sem falseios nem ornamentos, e com atores que têm a cara e, muitas vezes, a vida dos personagens que interpretam. O elenco de Você Não Estava Aqui é, como na maior parte dos filmes de Loach, um arraso: nenhum rosto conhecido, todos assombrosamente convicentes e imbuídos de seus papéis, incluindo Maloney (Ross Brewster), o gerente do depósito, que a certa altura explica para Ricky com raciocínio inquestionável por que tem que ser um filho da mãe com seus motoristas. Mais: a espiral em que Ricky, Abbie e seus dois filhos caem com a entrada dele no serviço de entregas é não só lógica, como dificilmente poderia ter sido evitada. Loach tem um coração do tamanho do mundo, e uma das coisas mais lindas dos filmes dele são os personagens que surgem em pontas – uma mulher no ponto de ônibus, uma enfermeira no hospital, um policial na delegacia – para demonstrar que, em lugares e momentos inesperados, ainda se pode encontrar alguma solidariedade. Até a briga de Ricky com um freguês por causa de futebol é tocante, de certa maneira: eles falam mal do time um do outro, se xingam, mas estabelecem uma conexão. No fim, acho que essa é a única crença de Loach que realmente importa, e é aquela que faz dos filmes dele experiências ao mesmo tempo tão devastadoras, e tão sublimes.
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Trailer
VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI (Sorry We Missed You) Inglaterra/França/Bélgica, 2019 Direção: Ken Loach Com Kris Hitchen, Debbie Honeywood, Katie Proctor, Rhys Stone, Ross Brewster Distribuição: Vitrine |