Quem é James Gunn, diretor que redimiu a franquia ‘O Esquadrão Suicida’
Com sua imaginação delirante, sem filtro nem censura, cineasta é a melhor coisa que poderia ter acontecido à DC em geral — e este blockbuster em particular
Avançando pelo corredor lotado de inimigos, Arlequina corta, decepa, mutila e degola. Mas, na sua imaginação, ela está em um momento princesa Disney: os jorros de sangue viram explosões de flores multicoloridas, passarinhos de desenho animado brincam entre os cadáveres e ela ri, deleitada, enquanto continua a esquartejar. É inesperado, absurdo e, por que não, épico; finalmente, Arlequina está livre para ser quem é — doce, alegre, entusiasmada e, claro, patologicamente desequilibrada, numa combinação que Margot Robbie já acertava quando roteiro e direção não ajudavam, mas que aqui, com o apoio deles, ela torna inebriante. As chaves da cadeia são cortesia de James Gunn, um sujeito de 55 anos e cabelos jovialmente espetados que, em um zigue-zague desses de dar torcicolo, está na sua enésima e mais impressionante encarnação profissional (numa das primeiras, foi vocalista de uma banda new wave que chegou a ter sucesso moderado). Vindo pela beirada, sem ninguém ver, em 2014 Gunn transformou um outro grupo de desajustados — os Guardiões da Galáxia — em um dos maiores sucessos da Marvel, e repetiu a dose em 2017. Quando alguns tuítes antigos com piadas de péssimo gosto sobre assédio sexual e pedofilia foram desencavados, ele caiu no buraco do cancelamento e achou que nunca mais arrumaria emprego. Perdoado pelas bolas foras nas redes sociais, não só foi recontratado pela Marvel, para a qual fará um terceiro Guardiões da Galáxia, como com O Esquadrão Suicida (The Suicide Squad, Estados Unidos, 2021), já em cartaz no país, Gunn acaba de dar à rival DC tudo o que ela precisava e mais um tanto: vigor, energia, escracho e uma criatividade delirante, sem filtro nem censura.
Esquadrão Suicida: Ponto sem Volta
Gunn, em suma, é a melhor coisa que poderia ter acontecido ao estúdio — e particularmente ao bando de criminosos chantageados pela agente do governo Amanda Waller (Viola Davis) a participar de missões nas quais a volta é incerta (agora, incerta de fato: se há uma coisa que Gunn leva a sério aqui, com delicioso efeito cômico, é que alguns dos anti-heróis têm de bater as botas ou o título não se justifica). Não é que a Warner ou a DC reneguem publicamente o desastroso Esquadrão Suicida dirigido por David Ayer em 2016, mas fica implícito o recado: favor desconsiderá-lo, porque estamos recomeçando do zero.
Com a rédea solta, o diretor e roteirista (único roteirista, o que faz toda a diferença) traz de volta alguns personagens indispensáveis, como Arlequina, o coronel Rick Flag (Joel Kinnaman) e a agente Waller, acrescenta ao rol vários outros, manda uns tantos deles pelos ares e então prossegue com os remanescentes, entre os quais se inclui, sem maiores explicações, um tubarão-branco de raciocínio lento dublado por Sylvester Stallone. O objetivo é a Ilha Corto Maltese — fãs de quadrinhos vão pescar a homenagem ao personagem criado pelo italiano Hugo Pratt nos anos 60 —, onde um golpe de Estado ameaça libertar sobre o mundo uma coisa que não deveria nem existir. Entram ainda no rolo guerrilheiros (Alice Braga interpreta a líder da Resistência), o legado perverso dos nazistas que se refugiaram na América Latina depois da II Guerra Mundial e uma doninha de ar depravado (Sean Gunn, irmão do diretor, faz o papel). No meio de tudo isso, Gunn ainda acha um jeito de usar o edipiano Bolinha (David Dastmalchian), que vê a cara da mãe gorduchinha em tudo e todos, para fazer uma homenagem muito bem bolada — o trocadilho é inevitável — ao Woody Allen de Contos de Nova York.
Esquadrão Suicida: Vivendo no Limite
Com tantos malabares (ou bolinhas) no ar, Gunn às vezes mete os pés pelas mãos. Mas O Esquadrão Suicida é melhor por não ser perfeito: é no tumulto e na profusão que seu autor viceja, e na sua resistência inata ao burilado, lustrado e bem alinhado que ele acha a sua marca. Nos fundamentos, porém, Gunn tende ao conservador. Para que O Esquadrão Suicida não desabe sob o peso da alopração, ele o sustenta com um arco dramático erguido entre duas fundações sólidas — uma, o inglês Idris Elba, de notórios carisma e excelência, no papel do Sanguinário; a outra, a portuguesa de 24 anos Daniela Melchior. No papel da Caça-Ratos II, que tem a habilidade de atrair multidões de roedores para si, Daniela não encanta só o Sanguinário, a quem ela elege como figura paterna; ela encanta o próprio filme com suas notas de melancolia e de saudade — aquele sentimento para o qual só a língua portuguesa mesmo tem a palavra certa.
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750
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