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‘O Irlandês’: o arrebatador olhar de Martin Scorsese sobre a máfia

Com seu estupendo domínio de cena, o diretor conta sua versão de uma história real — e impregna o filme feito para a Netflix com a angústia do esquecimento

Por Isabela Boscov Atualizado em 10 dez 2019, 11h21 - Publicado em 22 nov 2019, 06h00

Mal de saúde e preso a uma cadeira de rodas em um asilo de idosos, Frank “o Irlandês” Sheeran (Robert De Niro) narra para o espectador como tudo se passou, desde o dia distante em que, dirigindo seu caminhão de entregas numa estrada próxima à cidade de Filadélfia, conheceu o chefão local Russell Bufalino (Joe Pesci, em uma atuação extraordinária) — e assim se aproximou da máfia e, por causa dela, acabou se envolvendo também com Jimmy Hoffa (Al Pacino). “Nos anos 50, Hoffa era maior do que Elvis Presley. E, nos anos 60, era maior do que os Beatles”, explica Sheeran a respeito do folclórico e poderosíssimo presidente do maior sindicato americano de caminhoneiros. Entre 1957 e 1971, Hoffa teve o transporte de cargas dos Estados Unidos nas mãos, dobrando aos seus interesses tanto governo como agências da lei e organizações criminosas — até desaparecer, ou ser desaparecido, em 30 de julho de 1975, quando tentava reconquistar o controle do sindicato.

O crime suscitou uma das mais vastas e prolongadas investigações já conduzidas na história policial americana. Mas, até hoje, quem matou Hoffa e o que foi feito de seu corpo são perguntas sem resposta, no que virou uma obsessão para detetives amadores, teóricos da conspiração e americanos de certas gerações, entre as quais a do cineasta Martin Scorsese, de 77 anos. Depois de três horas e meia de filme, porém — e que filme —, Frank Sheeran põe o nome de Jimmy Hoffa na conversa com a enfermeira que cuida dele no asilo, e a moça dá de ombros; Jimmy quem?

O Irlandês (The Irishman, Estados Unidos, 2019), que está em cartaz em algumas salas de cinema e estreia na Netflix nesta quarta-feira, 27, parece em tudo uma escolha natural para Martin Scorsese, um descendente de sicilianos que cresceu no Queens nova-­iorquino cercado por tipos como os que frequentemente retrata em seus filmes. Mas, à medida que a história transcorre, outros temas que soam bem mais íntimos começam a subir à superfície: velhice, obsolescência, reputação, a desconexão entre o passado e o presente. Scorsese não sublinha esses temas. Com seu estupendo domínio de cena, ele apenas os reitera de maneira que impregnem o filme, como se fossem um pensamento que nunca se articula completamente. Mas é nesse eco que está a razão de ser de O Irlandês.

Se na trilogia O Poderoso Chefão Francis Ford Coppola mitologizou o alto escalão da máfia, Scorsese sempre se interessou mais pelos soldados e tenentes do crime organizado, aqueles homens que recebem ordens e prestam contas, e que às vezes, como Henry Hill, o personagem de Ray Liotta em Os Bons Companheiros (1990), se deixam intoxicar pelos maços de dinheiro presos com clipes, pela permissão fácil para a violência e pelos rapapés que donos de mercearias e garçons fazem a eles. Frank Sheeran é um típico soldado (“Pinto paredes”, ele diz — e pinta-as mesmo, com sangue). Pela lealdade, é promovido a sargento e, depois, a figura de proa do sindicalismo regional. Ao contrário do jovem e alucinado Henry Hill de Os Bons Companheiros ou do metódico e ambiciosíssimo Sam Roths­tein de Cassino (1995), também interpretado por De Niro, Sheeran é um personagem contido: menos dado a voos de imaginação, mais prestativo e obediente — e truculento. Mas, do mesmo modo, é alguém que confunde o medo que inspira com respeito, e o terror que é capaz de instaurar com poder.

Em O Irlandês, Scorsese lembra que, quando a conta por esse estilo de vida chega, ela é a mais alta possível: cada novo personagem que aparece na tela (e vale recordar que tanto Os Bons Companheiros e Cassino como O Irlandês tratam de figuras verídicas) é apresentado com dizeres que esclarecem as circunstâncias da sua morte, invariavelmente violenta e prematura — Fulano, com três tiros na cabeça à porta de casa; Sicrano, degolado em seu próprio carro; Beltrano, esfaqueado à mesa do jantar. E eis o primeiro fato muito saliente no que se refere a Frank Sheeran: sua idade avançada. É uma espécie de sorte que a violência o tenha poupado — mas uma sorte amarga, solitária, povoada de fantasmas e corroída pela dúvida a que seu presente vazio o obriga: terá sido um sonho?

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COMO NOS VELHOS TEMPOS - De Niro com Joe Pesci, um dos atores-assinatura de Scorsese: atuação extraordinária (Divulgação/Netflix)

De outra forma, como explicar que tanto som e tanta fúria nada mais signifiquem, e que a nova geração nada conheça de suas façanhas? De certa maneira, aí está a razão dos 209 minutos de O Irlandês, o mais longo de todos os filmes que Scorsese já fez: o corte da montadora Thelma Schoonmaker continua tão limpo e decidido quanto sempre foi — é Scorsese quem reluta em editar seu envolvimento com a vida interior desses personagens. No panorama mundial das últimas cinco décadas, poucos diretores poderiam comparar suas façanhas às de Scorsese. E, no entanto, ele admite essa mesma sensação de descompasso.

Em um texto extremamente lúcido e inteligente — e muito mal compreendido — publicado no último dia 4 no jornal The New York Times, ele falou de como os filmes de super-heróis, por mais benfeitos, prazerosos ou relevantes para seu público que sejam, para ele não são cinema, porque as considerações comerciais se sobrepõem a qualquer inquietação artística. Falou também de como é grato à Netflix por viabilizar O Irlandês, que de outra forma nunca encontraria produção — mas obviamente preferia que a tela grande fosse o destino natural de seu filme. A angústia e a perplexidade de Sheeran, enfim, parecem ser as de Scorsese: são a constatação de que o esquecimento pode chegar para qualquer um, como chegou para Jimmy Hoffa.
Publicado em VEJA de 27 de novembro de 2019, edição nº 2662

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