A nova batalha pelo Anel
Em As Duas Torres, o diretor Peter Jackson mostra que sua guerra para levar Tolkien à tela continua vitoriosa
Nada foi mais difícil no primeiro episódio de O Senhor dos Anéis, diz o diretor Peter Jackson, do que bolar as cenas expositivas: aquelas em que, disfarçadamente e sem interromper a ação, conta-se à plateia o indispensável para que ela compreenda a trama. Por exemplo, qual o poder do anel (trazer uma nova era de trevas), quem é Sauron (o senhor do mal), quem são os hobbits (seres semelhantes a homens, mas diminutos e de pés peludos), por que um deles, Frodo, aceita a missão de arriscar a vida na tentativa de destruir o anel (quanto mais poderosa a pessoa que o usa, mais perigoso o objeto se torna, o que faz dos pacatos hobbits os seus portadores ideais) – e também por que o homem Aragorn, o elfo Legolas, o anão Gimli e o mago Gandalf se incumbem de proteger Frodo até onde possível na empreitada (eles representam os povos que ainda não sucumbiram às trevas). Pela quantidade de parênteses do período acima, pode-se imaginar o alívio do neozelandês Jackson em se ver livre de tantas explicações – e o quão pouco esse alívio deve ter durado em face dos desafios ainda mais duros de O Senhor dos Anéis – As Duas Torres.
Por ser a segunda parte de uma trilogia, As Duas Torres não tem um começo nem um fim propriamente ditos. Além disso, traz tanto enredo a cobrir que simplesmente não há tempo para recapitulações. O filme mergulha na ação desde o primeiro minuto para, três horas depois, fazer com que a plateia deixe o cinema num estado de suspense – e agradável insatisfação- que só se resolverá daqui a um ano, com O Retorno do Rei, que encerra a saga publicada pelo escritor inglês J.R.R. Tolkien entre 1954 e 1955. Há aí, claro, um obstáculo. Quem deixou de ver o primeiro episódio (deve ser pouca gente, já que ele rendeu mais de 860 milhões de dólares nas bilheterias) não tem a menor chance de acompanhar o segundo. Mas não é um problema difícil de remediar, já que A Sociedade do Anel está disponível em vídeo e DVD. Tomada essa providência, As Duas Torres se mostra um filme ainda mais bem resolvido, e consideravelmente mais monumental, do que o primeiro.
Nesta parte da história, a irmandade formada para conduzir o anel até sua destruição se cindiu. O mago Gandalf, mentor da missão, despencou num precipício junto com um demônio de lava e é dado por morto. Aragorn – que começa a assumir seu papel de verdadeiro herói da saga – lidera o elfo Legolas e o anão Gimli numa busca por dois outros hobbits que foram capturados pelos monstruosos orcs e uruk-hais, que formam a infantaria de Sauron e seu aliado, o mago decaído Saruman. A perseguição é malsucedida, já que os dois hobbits escaparam e foram dar numa velha floresta, onde estão sob a guarda de uma árvore ancestral, que anda e fala. Mas a trilha leva os três companheiros até o reino de Rohan, que não sabe como resistir à guerra iminente com Saruman, já que seu rei, Théoden, está velho e envenenado pelas palavras de um conselheiro traidor. Lá, Aragorn, Legolas e Gimli ajudarão a organizar uma batalha absolutamente espetacular – em que 300 homens encastelados no abismo de Helm terão de enfrentar 10.000 uruk-hais. Enquanto isso, Frodo e seu fiel jardineiro, Sam, continuam de posse do anel no caminho para Mordor, o domínio de Sauron. Perdidos e desesperançados, eles se vêem na contingência de aceitar um guia perigoso – a criatura Gollum, que teve o anel em suas mãos por séculos e foi consumida por ele até se tornar um feixe de ossos e malevolência.
O diretor Jackson equilibra esses vários ramos do enredo de As Duas Torres com critério. Reduz certos trechos da história ao mínimo, amplia aqueles que são mais ricos do ponto de vista dramático e visual e ainda reescreve Tolkien, por assim dizer. Uma das cenas mais belas do filme, aquela em que se vê o destino malfadado que aguarda o romance entre o mortal Aragorn e a imortal Arwen, não está no livro. Que Jackson torne inteligível esse emaranhado de tramas já é digno de admiração. Mas ele vai mais longe: As Duas Torres deixa de lado o tom pastoral de A Sociedade do Anel para mergulhar de fato no universo épico, profundamente marcado pela mitologia nórdica, de Tolkien. O resultado não é apenas empolgante. Ele estabelece parâmetros para a técnica cinematográfica que devem estar deixando o americano George Lucas, o autoproclamado patrono dos efeitos digitais, verde de inveja.
Jackson filmou os três capítulos da saga de uma só tacada, ao longo de quase um ano e meio, o que garantiu o custo comparativamente baixo da produção (300 milhões de dólares, no total) e a unidade no visual e na atuação quase sempre notável de seu elenco. Nos três anos que antecederam as filmagens, as estrelas foram os artesãos. Cada copo, vestimenta, armadura, cota de malha ou espada que se vê em cena foi confeccionado manualmente, segundo técnicas medievais — o período com que O Senhor dos Anéis tem maior afinidade. Nos doze meses anteriores a cada lançamento, o peso recai sobre os técnicos em efeitos. Isso ao ritmo de 24 horas por dia: as equipes estão espalhadas pelo globo e trabalham sem parar, cada uma no seu fuso horário. Desde já, elas tentam cumprir o prazo para que O Retorno do Rei fique pronto nesta mesma semana de 2003. O saldo desse investimento pode ser conferido, por exemplo, na batalha de Helm, que só em filmagem consumiu três meses de atividade ininterrupta. Para essa cena, o diretor inventou um software em que os soldados digitais não são clones, como de hábito. Eles sabem diferenciar inimigos de aliados e tomam suas próprias decisões. O efeito é absolutamente realista. A criatura Gollum é um marco ainda mais relevante. Jackson contratou o ator inglês Andy Serkis para dar voz ao personagem e também para desenvolver seus movimentos peculiares. Numa primeira etapa, Serkis participava das cenas com Elijah Wood e Sean Astin, que interpretam Frodo e Sam, para que eles acertassem suas marcações e não tivessem a sensação incômoda de contracenar com o vazio. Em seguida, Serkis repetia as cenas sozinho, vestindo um macacão dotado de sensores. Tais sensores serviam para transmitir ao computador as coordenadas de seus movimentos, transformados depois em animação digital. Por fim, fez-se de Gollum um ator digno desse nome. Dividido entre a lealdade a Frodo, que o trata com compaixão, e o desejo pelo anel, ele é o personagem mais rico do filme, ao mesmo tempo trágico e patético. Em instantes, Gollum dissipa na plateia aquilo que poderia ser a ruína de As Duas Torres: a consciência de que ele, na verdade, não existe.
Publicado originalmente em VEJA de 25 de Dezembro de 2002