“História de um Casamento”, da Netflix, é bom – mas nem tanto assim
Desempenhos de Scarlett Johansson e Adam Driver são o ponto alto, mas o diretor Noah Baumbach tem pretensões além das possibilidades
História de um Casamento, que foi produzido pela Netflix e estreou esta semana na plataforma cercado de elogios rasgados, começa com um recurso típico das comédias românticas: sobre uma montagem de cenas, ouve-se a voz de Nicole (Scarlett Johansson) descrevendo o marido e enumerando todas as coisas que ama nele; em seguida, ouve-se Charlie (Adam Driver) retribuindo a gentileza. O conforto induzido pelo truque é enganador; na verdade, Nicole e Charlie escreveram suas redações como parte de um exercício proposto pelo mediador de sua separação – para lembrarem que, antes da discórdia, houve amor e afeto. Nenhum dos dois vai ouvir o que o outro tem a dizer de bom; Nicole se recusa a ler suas páginas, Charlie se irrita, e adeus mediação. O que virá é um processo de divórcio manobrado por advogados ainda mais competitivos que o próprio casal e repleto de indignidades, durante o qual, apesar de suas melhores intenções no que toca ao bem-estar do filho pequeno, Nicole e Charlie mais de uma vez vão usar o menino para frustrar e ferir um ao outro.
O dado mais desorientador, para ambos, é que para eles próprios não está muito claro como se chegou a esse ponto. Nicole conheceu Charlie quando começava a despontar como estrela de comédias adolescentes; por ele, trocou Los Angeles por Nova York, e a carreira no cinema pelo teatro experimental, na companhia dirigida pelo marido. Em algum momento, começou a sentir que o que era gratificante nessa troca tornou-se sufocante. Charlie virou a estrela e ela, a coadjuvante. Para todos os efeitos, Charlie não notou essa insatisfação, e assim o desgaste foi progredindo. É bonito e é triste, como são sempre muito tristes as coisas preciosas que se desperdiçam: tanta paixão, tanta coisa em comum, e a certa altura os parceiros decidem – acho que seria essa mesmo a palavra – que nada daquilo era tão verdadeiro quanto parecia. Scarlett Johansson dá tudo o que tem ao papel, e Adam Driver dá mais ainda; é um desempenho com tantas nuances diferentes de desolação e de perda que é difícil elogiá-lo o suficiente. Durante o filme, é mencionado que Charlie não tem contato com a família; sua infância foi marcada por alcoolismo e violência doméstica, e na mãe de Nicole ele encontrou a compensação para essa falta. A certa altura, porém, ele flagra a sogra em um momento de alegria genuína com o novo namorado de Nicole, e lê-se no rosto de Driver a profusão de perdas que o divórcio está trazendo para ele. É, de longe, a melhor cena do filme, e uma prova de que, desde Frances Ha, Mistress America e Enquanto Somos Jovens, o cinema de Noah Baumbach vem incorporando elementos de generosidade e graça que no início não estavam lá.
Noah Baumbach é um diretor de frequente inspiração autobiográfica. O filme que o lançou – e é seu melhor até aqui -, A Lula e a Baleia, é uma metabolização do divórcio de seus pais, e está meio implícito que História de um Casamento usa aspectos de sua separação da atriz Jennifer Jason Leigh, com quem ele tem um filho que agora está com 9 anos. Baumbach é filho de dois críticos de cinema, e sempre ambienta seus filmes nesse meio intelectual e/ou alternativo nova-iorquino que ele conhece tão bem. Nessa dimensão, a de como as especificidades da experiência pessoal alimentam a encenação, não há o que discutir com História de um Casamento. Baumbach, porém, quer bem mais do que isso: quer um tipo muito especial de transcendência, aquele tipo que em geral se dedica aos filmes de Ingmar Bergman – em particular a Cenas de um Casamento, que Bergman fez como uma minissérie para a TV sueca em 1973 e permanece o estudo mais devastador de que se tem notícia da ruína afetiva de uma relação – mais até do que ruína, perversão e corrupção do afeto. Não estou especulando que esse seja o desejo de Baumbach: a certa altura, Charlie contempla um artigo de revista escrito sobre ele e a mulher anos antes e intitulado, previsivelmente, “Cenas de um Casamento”.
Se não der para chegar em Bergman – e, francamente, não dá -, então Baumbach espera evocar pelo menos o Woody Allen da fase bergmaniana de Hannah e Suas Irmãs. De novo, há um bocado de distância a cobrir. Woody também não chegou a Bergman, mas compreendeu uma das mais duras constatações do diretor sueco, a de que um relacionamento amoroso se constrói sobre uma tensão: tanto sobre o amor que lhe dá nome, como sobre a possibilidade sempre presente, sempre à mão, de ferir o outro no seu ponto mais mortal. Baumbach também entende isso, e é no desejo imenso de Charlie de ser um pai para o filho que Nicole o golpeia insistentemente. Mas, em sinal de como o mundo ficou insano, História de um Casamento acha esperado, ou mesmo natural, que essa luta de morte seja agora terceirizada. É por meio dos advogados (Laura Dern, fantástica, e Ray Liotta) que Nicole e Charlie se batem e se esfaqueiam, para então, no fim, tendo seus representantes legais feito o serviço sujo e tendo eles mesmo mantido as mãos mais ou menos limpas, poderem reencontrar um pouco do carinho perdido. Por algum motivo, achei isso o mais triste, ou deprimente, de tudo – a ideia de que não mais é preciso honrar esse luto e essa aniquilação enfrentando-os de frente, como Liv Ullmann e Erland Josephson tiveram de fazer em Cenas de um Casamento, mas sim por procuração, mediante honorários.
Trailer
HISTÓRIA DE UM CASAMENTO (Marriage Story) Estados Unidos/Inglaterra, 2019 Direção: Noah Baumbach Com Scarlett Johansson, Adam Driver, Laura Dern, Alan Alda, Ray Liotta, Julie Hagerty, Merrit Wever, Azhy Robertson Onde: na Netflix |