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Revolução Sexual (1963-2018) – um necrológio

De como um romance de Philip Roth ajuda a entender as perversões puritanas que vieram a reboque dos importantes movimentos contra o assédio sexual

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 Maio 2018, 14h48 - Publicado em 16 fev 2018, 20h48

Mickey Sabbath começou sua carreira de titereiro nas ruas de Nova York, nos anos 50. O teatro de bonecos improvisado na calçada atraía jovens estudantes universitários que apreciavam o viés subversivamente erótico que Sabbath conferia a um gênero de espetáculo em geral associado ao universo infantil. Em uma de suas apresentações, trabalhando os dedos como se fossem personagens do seu teatrinho libertino, Sabbath consegue desabotoar a camisa de uma jovem, expondo um de seus seios em plena rua. Aparece um policial para estragar a brincadeira, e Sabbath é preso, acusado de obscenidade e tentativa de abuso. No julgamento, a testemunha principal é Helen Trumbull, a garota que teve o seio exposto.  Ela entra no tribunal muito confiante: deseja afirmar que foi por sua livre e espontânea vontade que participou da peça de Sabbath. Mas então o promotor começa a lançar perguntas duras: “Com que frequência homens estranhos tocam nos seus seios no meio da rua? Você ficou surpresa, chocada? Você entraria na sua sala de aula com os seios expostos? Você contou a respeito desse episódio para seus pais? E para sua irmã de dez anos? E se Sabbath fizesse o mesmo com sua irmão de dez anos?”. Astuto, o promotor insinua que Helen era uma mulher permissiva e, no mesmo lance, faz com que ela pareça uma menina ingênua levada ao mau caminho por um estranho sedutor. A jovem assertiva que viera testemunhar em favor do artista de rua desmancha-se em choro, e Sabbath é condenado. Só não vai preso porque o juiz mostra-se complacente.

Na visão do protagonista de O Teatro de Sabbath – um dos romances americanos mais vigorosos do século passado -, policial, promotor e juiz eram todos agentes da repressão sexual contra a qual ele se insurgia com seus fantoches e marionetes. Criação magistral de Philip Roth, Sabbath, o sátiro, lutou a vida toda contra essas constrições sociais, para descobrir afinal que o sexo pode ser antes uma condenação do que uma liberação, e que o corpo voluntarioso também é frágil, sobretudo quando a velhice cobra seu preço em desgaste e melancolia. Sabbath é meio Lear, meio Falstaff: um personagem que conhece a húbris do herói trágico e o ridículo do bufão cômico. E, tal como essas criaturas da vasta galeria de Shakespeare, Sabbath é um personagem inesquecível. Mas não é dele que quero falar hoje.

Philip Roth
O escritor Philip Roth em seu apartamento em Nova York em 2011 (Julian Hibbard/Getty Images)

Quem me interessa hoje é a coadjuvante Helen Trumbull, que só aparece no episódio resumido acima – meras dez páginas de um romance com turbulentas 450 páginas. Eu me lembrei dela enquanto lia, no site feminista Babe, o depoimento da jovem tiete – identificada com o nome fictício de Grace – que saiu para jantar e fazer algumas coisinhas mais com o comediante Aziz Ansari. O ator de Parks & Recreation e Master of None é apresentado como um homem abusivo, um Harvey Weinstein mais jovem, mais magro e menos poderoso, um quase-estuprador. E o que ele fez? Para começar, no restaurante, mostrou-se apressado, como quem quer logo levar a potencial parceira para o sexo. Diante da grosseria, Grace poderia ter alegado um compromisso logo cedo na manhã seguinte e voltado para casa, onde passaria a noite confortavelmente assistindo a uma série da Netflix (não seria Master of None, naturalmente). Mas não: ela seguiu até o apartamento de Ansari. Quando ele praticou sexo oral, ela achou meio desconfortável – mas, de novo, não pediu para que ele parasse. Ansari em seguida insistiu para que os dois partissem para outras modalidades sexuais. Grace pediu para as coisas irem mais devagar. Ansari aceitou, os dois sentaram no sofá para conversar, mas Ansari voltou a insistir nas propostas sexuais. Grace disparou o “vocês homens são todos iguais” e foi embora – no Uber que Ansari chamou.

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A dar crédito ao relato, parece que Ansari não é dos caras mais jeitosos na cama (ou no balcão da cozinha, onde aconteceu o sexo oral). Mas quem deseja ter relações variadas ao longo da sua vida amorosa – e isso vale para homens e mulheres – eventualmente encontrará parceiros tão ruins ou piores do que o comediante. Grace, porém, não ficou frustrada ou irritada: ela diz que se sentiu “violada”. Por isso deu seu triste depoimento a Babe: para acusar Ansari por essa impalpável “violação”.

A exposição pública da intimidade de Ansari vem embalada pelo movimento MeToo – que é importante e muito necessário, sim. Já era mais do que hora de dar um basta aos assediadores, aos homens de poder e fama que  constrangem mulheres (ou homens, como parece ser o caso de Kevin Spacey) a fazerem o que elas (ou eles) não têm o menor desejo de fazer. Mas não consigo acompanhar o argumento de que, em uma virada de jogo histórica contra o machismo, certos excessos serão perdoáveis – e tudo bem colocar um predador como Weinstein na mesma categoria do mão-boba John Lasseter quando, afinal, está se fazendo justiça! Lasseter agiu muito mal, sim, mas não é, até onde se apurou, um criminoso. E que dizer então de Ansari? Suas faltas não se deram no local de trabalho, e ele não usou nem o seu poder de mando nem sua força física para se impor a Grace. Ele foi, na pior das hipóteses, um parceiro sexual desagradável, e só por isso viu suas desajeitadas práticas eróticas narradas em um site feminista, no primeiro caso de revenge porn político de que se tem notícia. 

Prevejo que a leitora militante acusará o blogueiro de defender seu parti pris patriarcal. Ao contrário: o mais alarmante em casos desse tipo é o modo como a mulher é reduzida à posição de donzela indefesa, sem voz nem volição. Em dezembro do ano passado, cerca de um mês antes de estourar o escândalo Grace-Ansari,  Jessica Bennett, recém apontada pelo jornal The New York Times para a novíssima posição de “editora de gênero”, já “problematizava” o que até então sempre se entendeu como sexo consensual. (Parece que hoje o mero “sim” não constitui consentimento válido: é preciso um “sim entusiástico”. Se a mulher não recitar a última linha de Ulisses, nada de sexo!) Muitas mulheres, argumenta a editora de gênero, aceitam fazer sexo porque é o que manda a “sociedade”, esse ente insidioso e onipresente. A editora de gênero faz uma analogia capciosa: se aceitamos que uma pessoa que bebeu até desmaiar não está em condições de dar seu consentimento para uma relação sexual, por que não admitir que o mesmo vale para uma mulher incapaz de dizer não por causa de “expectativas culturais”?

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(Em uma entrevista, a editora de gênero – repito a expressão para ver se em algum momento ela fará sentido – declarou que seu novo cargo se faz necessário porque a mídia foi criada “por e para homens brancos”. Arrisco acrescentar: é só porque a indústria de tecnologia foi criada por e para homens brancos que ainda não existe um bafômetro capaz de aferir não só o nível de álcool da pessoa testada, mas também a quantidade de expectativas culturais machistas que ela carrega.)

Retorno a  O Teatro de Sabbath. O promotor, representante do mais antiquado puritanismo americano, conseguiu transformar Helen Trumbull em uma menininha tola e chorosa que se deixou manipular por um artista de rua devasso. O site Babe e a editora de gênero do New York Times,  representantes do puritanismo americano hipsterizado, desejam fazer das mulheres bonequinhas ocas manipuladas pela espectral voz da sociedade e pelas tenebrosas expectativas culturais. O puritano “raiz” tentava barrar a revolução sexual que despontaria na década de 60; a puritana hipster deseja enterrar a revolução sexual que eclodiu nos anos 60.

***

O mesmo New York Times que contratou Jessica Bennett como editora de gênero também tem Bari Weiss em seu corpo editorial. Bari publicou um texto muito sensato sobre o caso Aziz: diz que ele é culpado… por não saber ler a mente de Grace. De que outra forma ele poderia saber que ela não desejava fazer o que estava fazendo? (As “expectativas culturais”, suponho, estariam tapando a boca dela.)

Uma jornalista do Huffington Post qualificou Bari de “apóstata do feminismo”. Bari pode reivindicar a companhia prestigiosa de Margaret Atwood. A autora de O Conto da Aia relata, em artigo no The Globe and Mail, que vem sendo chamada de bad feminist por certas posições públicas que tem tomado. “Eu não acredito que as mulheres são crianças, incapazes de iniciativa própria ou de tomar decisões morais”, diz Margaret Atwood. É tudo o que o presente texto deseja afirmar.
Bari Weiss deu uma entrevista muito lúcida a Bill Maher, sobre a importância do movimento MeToo – e sobre seus destemperos. Em inglês, sem legendas:

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Os anos citados entre parênteses no título deste texto são arbitrários e devem ser lidos com um bem-humorado grão de sal. Datei a morte da Revolução Sexual no ano corrente porque foi em janeiro que veio à tona o affair Grace-Anzari – mas esse pequeno episódio não é nem será um marco histórico. E foi o poeta Philip Larkin, em Annus Mirabilis, que datou a Revolução Sexual em 1963. Aliás, o poema diz mais do que isso: “a relação sexual começou em 1963, entre o fim da censura a O Amante de Lady Chatterley e o primeiro LP dos Beatles”.

Larkin está ironizando a própria ideia de que uma Revolução Sexual ocorreu nos anos 60. O historiador Tony Judt dá amparo à ironia do poeta em seu monumental Pós-Guerra: “A ‘revolução sexual’ dos anos 60 foi certamente uma miragem para a imensa maioria das pessoas, fossem elas jovens ou velhas. (…) Quando comparados aos anos 1920, ou ao fin-de-siècle europeu, ou ao demi-monde de Paris da década de 1860, os Swinging Sixties foram bem comportadinhos”.
Com todas as ressalvas, porém, ainda parece seguro afirmar que houve uma relativa liberação dos costumes sexuais dos anos 60 em diante. Como toda grande mudança social, a propalada Revolução Sexual trouxe perdas e ganhos, e tem suas contradições, insuficiências e zonas de sombra moral. Mas a ideia fundamental de que todos temos, homens e mulheres, a capacidade e o direito de tomarmos decisões sobre sexo ainda me parece um legado defensável dessa superestimada revolução.

***

Philip Roth declara-se aposentado. Nemesis, de 2010, foi seu último livro. Mas a entrevista que ele concedeu em janeiro ao New York Times – aquele jornal que tem uma editora de gênero – mostra, em poucas linhas, um escritor no pleno domínio de seu instrumento. O entrevistador pede que Roth, como romancista que sempre escreveu sobre o desejo sexual, avalie o atual momento de revelações sobre casos de abuso e assédio sexual. “Como romancista, não sou um estranho às Fúrias eróticas”, diz Roth. Por isso, ele conclui, nenhuma das “condutas mais extremas” que se têm noticiado nos jornais o surpreendem.

As Fúrias eróticas manifestam-se em todas as páginas de  O Teatro de Sabbath. Não consigo encontrá-las na triste crônica da noite frustrada de Grace e Aziz Ansari.

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