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Onça-pintada da Amazônia vira alvo da medicina tradicional chinesa

Duas ONGs ambientalistas identificaram o crime que pode se tornar mais uma ameaça ao felino

Por Jennifer Ann Thomas Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h59 - Publicado em 31 dez 2018, 11h00

Em setembro deste ano, a ONG Proteção Animal Mundial divulgou um relatório amedrontador: onças-pintadas na Floresta Amazônica do Suriname foram caçadas ilegalmente para abastecer o mercado da medicina tradicional asiática. Ao longo de dez meses, a organização de defesa dos animais investigou a prática ilícita a revelou a consolidação do novo mercado que ameaça a sobrevivência do maior felino das américas. O documento confirmou o que já havia sido identificado pela ONG ambientalista WWF em 2010. Quase uma década atrás, a instituição denunciou traços do crime dentro do Brasil e agora o receio é que a prática se espalhe por toda a Amazônia antes que seja possível colocar em prática políticas conservacionistas para preservar a espécie ameaçada de extinção.

No estudo da Proteção Animal Mundial, foram identificados três produtos feitos com as partes do felino: uma substância parecida com uma pasta (produzida com pedaços que não são aproveitados em outros produtos, ao contrário da pele, das unhas e dos dentes), artefatos com dentes e unhas (encontrados principalmente em lojas de joias em Paramaribo, capital do Suriname), e a carne (comunidades chinesas e filipinas residentes no Suriname comem a carne da onça, às vezes em sopas, e usam os ossos para produzir vinho). De acordo com a diretora executiva da Proteção Animal, Helena Pavese, a investigação começou após a ONG receber uma denúncia sobre o crime contra a fauna. “O trabalho foi feito com visitas de campo, entrevistas com agentes de governo, ambientalistas e moradores das comunidades. É um problema que acontece de fato, apesar de não ser tão explícito, porque a caça e a comercialização são proibidas no país”, explicou Pavese.

Segundo as ONGs, as onças se tornaram o novo alvo da medicina asiática para atender a demanda que não é suprida com artefatos feitos com partes de tigres, pois estes foram caçados intensamente. A pasta de onça foi o único produto diretamente relacionado com a exportação para a China, despachada em navios dentro de tubos. A relação com a América do Sul não surgiu simplesmente pela necessidade de encontrar um novo felino místico. Entre 2000 e 2015, em 13 países (Bangladesh, Butão, Camboja, China, Índia, Indonésia, Laos, Malásia, Mianmar, Nepal, Rússia, Tailândia e Vietnã), a ONG de proteção animal Traffic mostrou no relatório Reduzido a pele e ossos, divulgado em 2016, que a população de tigres foi reduzida a 3 800 animais soltos na natureza. No começo do século 20, existiam cerca de 100 000 exemplares da espécie na vida selvagem. As relações comerciais entre a China e os países do continente sul-americano se estreitaram nos últimos anos, o que aumentou o número de imigrantes para a região e, consequentemente, a demanda pelos produtos ilegais. De acordo com o estudo Matado por uma cura, relatório produzido também pela Traffic, em 1994, todas as partes de um tigre são usadas em tratamentos, até mesmo os bigodes, a gordura, a vesícula e a pele. Os motivos também são diversos, como a busca para o tratamento contra vômito, mordida de cachorro, dor de dente, vista cansada e doenças mentais. Os ossos dos tigres são os mais valiosos e o úmero é o mais valorizado. Os países com maior número de apreensões foram China, Indonésia e Tailândia, onde o tigre é considerado o animal mais poderoso e teria a função de curar dores corporais, reumatismo, fraqueza e paralisia muscular.

Com relação à caça ilegal no Brasil, o especialista em Amazônia do GreenPeace, Rômulo Batista, afirmou que a motivação pela demanda asiática ainda não é tão comum nos relatos, mas o felino é extremamente ameaçado por fatores internos. “A medicina tradicional é mais uma ameaça a esse animal guarda-chuva. Ele é um predador de topo de cadeia que garante uma série serviços de conservação”, afirmou. Batista explicou que há várias ações em andamento que pressionam a população desses animais no Brasil e os colocam em risco. A onça sobrevive por se alimentar de outros animais, normalmente os indivíduos mais velhos ou doentes de outras espécies, e funciona como parte do equilíbrio do ecossistema, por ser um predador que mantém as populações saudáveis. Contudo, há no Congresso um projeto de lei para liberar a caça esportiva no país, que colocaria em risco a oferta de comida para o felino. A espécie precisa de grandes áreas de habitat para viver, o que exige a criação, manutenção e conservação de Unidades de Conservação e Terras Indígenas, mas a política de novas áreas protegidas ficou estagnada e o desmatamento ilegal dentro delas quase dobrou nos últimos dez anos. Há medidas para facilitar a mineração, a instalação de hidrelétricas e o agronegócio em áreas protegidas, atividades que abrem caminho para o tráfico de animais. “É um pacote de ações que mostra um futuro cruel para esses animais”, declarou.

Com a presença de ações humanas em áreas de floresta intocadas, a onça tende a procurar por alimentos em fazendas, como gado, porcos e galinhas, o que a deixa mais exposta à caça. A partir disso, há o tráfico motivado pelo oportunismo, pois o fazendeiro que matar o animal para defender a sua propriedade pode tirar proveito da espécie que é valorizada no mercado, enquanto há o tráfico encomendado, quando criminosos saem em busca dos animais com o objetivo de vender suas partes clandestinamente. Em 2016, um fazendeiro foi preso, e liberado após pagar fiança, por caçar onças no Mato Grosso, sob alegação de que elas atacavam o gado de sua propriedade. Em maio deste ano, a Polícia Federal prendeu duas pessoas que caçavam e traficavam animais, incluindo a onça, no Pará. Eles lucravam 1 000 reais por cada onça abatida. No Mato Grosso, a bióloga da USP Francesca Belém Lopes Palmeira estudou o prejuízo econômico causado por ataques de onças-pintadas a animais de fazendeiros. Palmeira afirmou que a perda financeira é de menos de 1%, mas o impacto causado na população é muito forte, o que faz com que os prejudicados queiram caçar o animal. Ainda, a bióloga alerta para uma prática identificada no trabalho de campo. Tradicionalmente, a região tinha uma espécie de caçador especialista em onças, procurado pelos fazendeiros quando ocorria um ataque aos animais de criação. Contudo, sabendo que a onça tem o hábito de retornar à carcaça para se alimentar novamente, alguns fazendeiros começaram a deixar veneno nos restos dos animais mortos. “Por pior que fosse, antes havia apenas um caçador na região. Agora, qualquer dono de sítio consegue comprar veneno nas lojas de agropecuária. Além desse perigo, a onça e todos os outros animais que passarem por ali podem morrer por envenenamento”, afirmou.

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No Instituto Mamirauá, uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável com área total de 1 124 000 hectares, o ecólogo e diretor técnico científico da instituição, Emiliano Esterci Ramalho, acompanha o monitoramento de onças-pintadas desde 2004. De acordo com Ramalho, os estudos têm o objetivo de entender a ecologia do feline para desenvolver estratégias de conservação e melhorar a vida das pessoas que convivem com as onças. “A caça à onça acontece na Amazônia inteira. Quando um ribeirinho mata uma onça na beira do rio, a ação, que também é ruim e trabalhamos para combate-la, faz parte do ciclo da floresta e o animal abatido acaba sendo substituído por outro exemplar da espécie. O problema é quando ocorre a caça predatória para abastecer um mercado negro”, explicou. Quando há uma motivação comercial, os caçadores entram nas áreas não habitadas por humanos na floresta e aonde vivem as chamadas populações fontes dos animais. Estas são as que garantem a continuidade das espécies, pois se reproduzem e geram filhotes.

De hábitos solitários, as onças permanecem em grupos de até quatro indivíduos quando uma fêmea está cuidando de seus filhotes. Quando crescem, eles dispersam para novas áreas, vivem separadamente e buscam regiões com oferta de alimento suficiente para evitar brigas com outras onças, até chegar a época de reprodução e procurarem as fêmeas para o acasalamento. Enquanto houver comida para todos, os conflitos acontecem principalmente pela disputa por fêmeas. Por isso, Ramalho afirmou que a medida para a sobrevivência destes felinos é a manutenção de extensas áreas de conservação. Com a floresta menor, há menos alimento e os animais mais jovens correm o risco de definirem novos territórios em áreas próximas a fazendas com animais domesticados, como gado, porcos e galinhas, e ficarem vulneráveis. “No Brasil, os relatos sobre a demanda para a medicina asiática ainda não indicam um problema grave, mas temos que ficar de olho porque ela pode vir a ser. Enquanto isso, precisamos de áreas protegidas, investimento em ciência e o reconhecimento das ONGs e das comunidades tradicionais para o desenvolvimento econômico do país com a floresta em pé”, afirmou. Em um artigo divulgado na revista científica internacional PLoS One no ano passado, Ramalho e uma equipe de pesquisadores demonstraram como a área de vida da onça-pintada aumenta de acordo com a fragmentação do habitat. Os felinos da Mata Atlântica, bioma com apenas 12% de floresta remanescente, percorreram quase o dobro de distância para manter uma área de vida.

Mesmo com os mais de 15 000 quilômetros entre a China e o Suriname, a distância deixou de ser um problema quando o acesso à internet se tornou comum. Como as denúncias são recentes, ainda não há análises suficientes sobre o tráfico de partes de onças-pintadas na internet, mas pesquisas feitas com outros grandes felinos demonstram o que pode acontecer. Um estudo da Traffic publicado no ano passado monitorou 112 palavras-chave, sendo 12 especificamente sobre tigres. A ONG mostrou que algumas buscas são literais, como “filhotes de tigre” à venda e “garras de tigre”. Os pesquisadores perceberam que os anúncios de tais produtos caíram de 2 000 por mês em 2012 para menos de 1 000 em dezembro de 2016, em 31 sites. Dentro do total de produtos de vida selvagem encontrados, os de marfim foram os mais populares, com 63,2%, seguidos por chifre de rinoceronte, com 18,1% e casco de tartaruga-do-pente, com 7,7%. Ossos de tigre representaram 4% do total de buscas, e ossos de leopardo 0,2%. Como a caça de onças-pintadas foi identificada recentemente, a ONG Proteção Animal, que investigou o assunto, afirmou que os dados coletados não podem ser divulgados por uma questão de segurança.

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Empresas de tecnologia chinesas, como a Baidu.com e a Tencent, colaboraram com investigações na China. Apenas a Baidu detectou mais de 70 000 conteúdos sobre tráfico ilegal de vida selvagem. Uma única loja de antiguidades de Xangai postou 31 062 novos anúncios sobre produtos ilegais de vida selvagem entre 2012 e 2016, um terço de tudo que foi registrado. Em 2016, a Universidade de Kent rastreou a dark net em busca de produtos de vida selvagem em geral, mas não encontrou indícios do crime. A conclusão foi que a prática não existia no submundo simplesmente porque não havia fiscalização suficiente na superfície, tornando desnecessário para os criminosos se esconderem na dark web.

Mas no ano seguinte, em uma nova análise, a Interpol e a Universidade de Kent encontraram 21 anúncios de pequenos comerciantes, principalmente de chifre de rinoceronte, marfim de elefante e partes de tigre. Com isso, as instituições concluíram que o monitoramento da dark web é necessário, por mais que a prática não seja tão disseminada. No mesmo relatório Reduzido a pele e ossos, da Traffic, a ONG destacou como o comércio ilegal de vida selvagem na internet se tornou um desafio persistente nos últimos anos, principalmente por causa da capacidade de se transformar rapidamente, com amplo alcance e ao conectar pessoas. No estudo, as redes sociais, principalmente aquelas com recursos de acesso restrito, como o WhatsApp e o Telegram, facilitam a comunicação entre traficantes de forma indetectável por causa da criptografia de ponta a ponta.

O relatório compilou exemplos práticos do problema: em 2014, autoridades de Jacarta confiscaram uma peça de pele de tigre que um traficante havia comprado no Facebook e estava tentando revender; na China, entre julho de 2011 e julho de 2012, mais de 9 000 anúncios de produtos feitos com o felino foram encontrados em monitoramentos de rotina em 114 sites; entre 2012 e 2015, 252 caninos de tigres foram confiscados, em comparação a apenas 41 unidades entre 2008 e 2011; no mesmo período, as patas de tigres interceptadas aumentara de 18 para 31 unidades. Da mesma forma como acontece com a falta de informações sobre a caça de onças-pintadas na América do Sul, a Traffic destaca como não há informação suficiente disponível para determinar a extensão do crime organizado na internet e nas redes sociais. Contudo, tais plataformas facilitam a disseminação da prática criminosa. Este ainda não é o cenário que ameaça o maior felino da América do Sul, mas ele ilustra o triste caminho que poderá ser percorrido caso a ameaça não seja combatida enquanto há tempo para evitar o pior.

Este artigo foi produzido por Veja como parte do programa ‘Reportando o comércio online ilegal de vida selvagem’. O projeto é uma parceria entre a Thomson Reuters Foundation e a Iniciativa Global Contra o Crime Organizado, financiada pelo governo norueguês. Mais informações estão disponíveis em: https://globalinitiative.net/initiatives/digital-dangers. O conteúdo é de responsabilidade do autor.

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