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Augusto Nunes

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Gilmar, O Libertador, sonha com a captura do governo de MT

Ele só precisa acionar sua usina de habeas corpus para devolver o direito de ir e vir a colecionadores de pecados veniais, mortais ou irremissíveis

Por Augusto Nunes Atualizado em 15 dez 2017, 16h44 - Publicado em 15 dez 2017, 16h43

Pela afrontosa misericórdia que o anima a livrar da cadeia delinquentes em geral — e, em particular, gente a quem é ligado por laços de amizade, de sangue ou tecidos em festas de casamento — o ministro Gilmar Mendes merece o epíteto que lhe foi conferido pelos companheiros do Supremo Tribunal Federal: O Libertador. É a versão brasileira da homenagem semântica que escolta o nome de Simon Bolívar, El Libertador.

Comandando tropas munidas de armas de fogo e espadas, El Libertador livrou do domínio espanhol um punhado de colônias sul-americanas. O Libertador só precisa acionar sua usina de habeas corpus para devolver o direito de ir e vir a colecionadores de pecados veniais, mortais ou irremissíveis. Estupradores compulsivos como Roger Abdelmassih, corruptos sem remédio como José Dirceu, meliantes de nascença como Antonio Palocci — eis aí três exemplos de que, para Gilmar, ninguém é tão culpado que não mereça seguir vivendo fora da gaiola.

Paradoxalmente, o ministro tão compassivo com figuras detestáveis, desprezíveis ou desavergonhadas é impaciente, irascível ou insolente com quem ousa violar o primeiro dos seus mandamentos particulares: discordar do que pensa ou diz o advogado autopromovido a Juiz dos Juízes é crime. Se praticado por um colega do STF, é crime hediondo, devidamente castigado com repreensões públicas, pitos formidáveis, ironias ferozes ou insultos que removem a fronteira que separa o plenário da mais alta Corte de uma rinha de briga de galo.

O menos tolerante dos 11 doutores venceu vários confrontos. Mas sofreu pelo menos três derrotas que figuram na antologia dos piores bate-bocas ocorridos no Supremo. Nesses tiroteios retóricos, sobraram para Mato Grosso estilhaços de balas endereçadas ao brigão de Diamantino. Foi assim em abril de 2009, quando Gilmar declarou-se acusado por Joaquim Barbosa, durante o debate em torno de um processo sem maior importância, de “sonegar informações” sobre o caso. Joaquim negou ter dito isso, mas a alma beligerante não sossegou. A temperatura só parou de subir quando o futuro relator do Mensalão perdeu a paciência.

“Vossa Excelência está destruindo a Justiça do nosso país!”, exclamou Joaquim. A réplica ensaiada por Gilmar estacou na continuação da contra-ofensiva: “Dirija-se a mim com respeito! Vossa Excelência não está falando com seus capangas de Mato Grosso!”. A pronta intervenção dos sensatos encerrou a sessão (e a troca de desaforos). Quando os trabalhos recomeçaram, nem Joaquim nem Gilmar acharam necessário esclarecer se existiam mesmo, e em caso afirmativo por onde andam, os misteriosos capangas de Mato Grosso.

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O segundo revés ocorreu em 27 de outubro deste ano, quando algumas considerações de Roberto Barroso sobre a possível extinção do Tribunal de Contas do Ceará foram interrompidas pelo aparte debochado de Gilmar:

— A gente citar o Rio como exemplo…

— Vossa Excelência deve achar que é Mato Grosso… — devolveu o carioca Barroso. — Onde todo mundo está preso.

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Era uma clara alusão ao aumento da população carcerária provocado por revelações feitas pelo ex-governador Silval Barbosa e pelo ex-deputado José Riva, até poucos anos atrás o ex-presidente perpétuo da Assembleia Legislativa.

— Ah, no Rio não estão? — replicou Gilmar.

— Aliás, nós prendemos. Tem gente que solta — golpeou Barroso, que em seguida levou o adversário às cordas com uma saraivada de consoantes e vogais. — Vossa Excelência normalmente não trabalha com a verdade. E está fazendo um comício que nada tem a ver com a extinção do tribunal do Ceará.

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A palavra comício não apareceu por acaso. Comício rima com candidato. E, como a maioria dos ministros, também Barroso está convencido de que Gilmar Mendes sonha com a captura do governo de Mato Grosso nas eleições de 2018. Decisões amparadas em conveniências políticas, como a absolvição de Aécio Neves, conversas noturnas e fora da agenda oficial com o presidente Michel Temer, acrobacias jurídicas concebidas para evitar a cassação da chapa Dilma Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral — para os colegas de Gilmar, todas essas estranhezas, somadas, confirmam que há uma candidatura em gestação.

Como ensinou a frase famosa atribuída a Garrincha, falta combinar com os russos — no caso, os responsáveis pelo cumprimento das legislação eleitoral e, sobretudo, os mato-grossense que votam. No universo dos brasileiros bem informados, o ministro é tão conhecido quanto hostilizado pelos amplamente majoritários defensores da Lava Jato. Nos grotões do país, ninguém sabe quem é Gilmar Mendes. Não lhe será difícil ampliar a taxa de conhecimento, mas quem sai do semianonimato não cai necessariamente nos braços do povo.

Saber quem é Gilmar, o que fez e o que provavelmente fará pode manter em níveis siberianos sua taxa de popularidade. Esse risco foi reiterado neste 7 de dezembro, quando se deu o terceiro duelo verbal, agora opondo o irrequieto mato-grossense ao também carioca Luiz Fux. Em busca de saídas para a distorção constitucional que  concede a deputados investigados o direito de libertar deputados presos, Gilmar ressuscitou seu fla-flu obsessivo.

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— Mato Grosso é um Estado progressista e o Rio de Janeiro está em falência — comparou.

— Um Estado progressista? — corrigiu Fux. — Sinceramente, desde que eu li a delação daquele governador Silval Barbosa…

Depois da leitura, Fux resumiu seu conteúdo com um adjetivo hiperbólico: aquilo é “monstruoso”. O ministro não é dado a superlativos. Mais: certamente imaginou, em algum momento da Lava Jato, que já vira o suficiente para não se surpreender com mais nada. Compreendeu que se enganara ao ver um monstruoso acervo de bandalheiras que os mato-grossenses, por enquanto, mal vislumbraram.

Até as aves do Pantanal sabem que Gilmar e Silval são amigos, e que é tarde para fingir que se conhecem só de vista. Se o ministro insistir na aventura política que passeia por sua cabeça, ambos estarão no mesmo barco. O naufrágio pode consumar-se antes do início da travessia.

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