O exercício do poder recomenda instalar fusíveis que possam ser descartados quando alguma coisa dá errado. Para preservar o comando central, e o próprio comandante. Na pandemia de Covid-19, Jair Bolsonaro ficou sem fusível para queimar. Não seria melhor para ele se hoje um ainda ministro Luiz Henrique Mandetta tivesse de responder pelos trágicos números?
Exercer e exibir poder pode ser prazeroso, mas traz custo. Aliás, os maiores obstáculos e armadilhas enfrentados pelo presidente têm resultado quase sempre das decisões dele mesmo. Foi Bolsonaro quem decidiu chamar Sergio Moro para o ministério. Tivesse ficado em Curitiba, o ainda juiz estaria dando dor de cabeça só aos adversários do ocupante do Planalto.
Foi também Bolsonaro quem, na formação do governo, resolveu dar ouvidos ao canto de sereia da dita nova política. Fazer média com o eleitor-torcedor intoxicado pela antipolítica. Agora tem de consertar o avião em voo, trazendo de forma meio atabalhoada uma base capaz de evitar na Câmara dos Deputados o impeachment ou a autorização para o processo no Supremo Tribunal Federal.
Mas Bolsonaro também foi prudente, pelo menos num caso. Quando decidiu ignorar a eleição interna da corporação e nomeou um de fora da lista tríplice para procurador-geral da República. Como estaria o morador do Alvorada se o comando da PGR estivesse, como inaugurado pelo PT, sob controle da guilda dos procuradores? O risco persiste, claro, mas menor.
“Os alinhados ideologicamente costumam ser mais fiéis. Quando o amor acaba, são os rivais mais ferozes”
Outra coisa arriscada: montar governo excessivamente com base em afinidade ideológica. O senso comum diz que os ideologicamente alinhados serão aliados mais fiéis. Quando o amor acaba, costuma ser o contrário. Os mais próximos no critério ideológico revelam-se os adversários mais ferozes. Desde Caim e Abel sabe-se: ódio entre irmãos é letal.
Eis minha engenharia da obra feita.
Mas talvez o principal problema do presidente resulte de um equívoco analítico: o erro na análise da conjuntura, da disposição das forças. Na identificação do inimigo mais perigoso. Enquanto Bolsonaro se dedica a infernizar a esquerda, quem lidera a operação de cerco e (tentativa de) aniquilamento contra ele são a direita e o dito centro atropelados na eleição presidencial de 2018.
A esquerda está fora da linha de sucessão. E o objetivo das diversas frações dela é ganhar a eleição de 2022 surfando no desgaste do bolsonarismo. A alternativa seria confiar na tempestade perfeita em que 1) o Tribunal Superior Eleitoral cassa a chapa Bolsonaro-Mourão, 2) o STF referenda e 3) no processo de liquidação do atual governo forma-se uma maioria eleitoral de esquerda.
Para a turma que pende à direita, o caminho parece menos pedregoso. Poderiam, por exemplo, trabalhar mais firmemente o impeachment e a proposta de um governo de “união nacional” em torno do vice. Uma dificuldade dessa saída é Hamilton Mourão não parecer disposto a conspirar contra o chefe.
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E tem sempre a alternativa do TSE, seguida do renovado truque de tentar a união em torno de um bolsonarismo sem Bolsonaro.
Publicado em VEJA de 17 de junho de 2020, edição nº 2691