Do alto do púlpito na Cúpula da ONU sobre Ação Climática, um par de trancinhas chamou a atenção de um punhado de líderes mundiais. O ano era 2019, quando Greta Thunberg, a atrevida ativista ambiental sueca, então com seus 16 anos, deu uma bela e justificada bronca nos presentes, que estavam fazendo pouco para frear o aquecimento global e se adequar às metas do Acordo de Paris, estabelecidas quatro anos antes. “Vocês estão falhando, mas os jovens estão começando a entender sua traição. Os olhos de todas as gerações futuras estão sobre vocês”, bradou Greta, empunhando uma bandeira da qual viraria um jovem símbolo. Agora, aos 20, ela é vista como fonte de inspiração para uma aguerrida garotada que adentra a arena global atraindo os holofotes para a causa que é abraçada cada vez mais cedo e com maior estridência. “Greta abriu caminho para que crianças e adolescentes mantenham acesa a luta pelo verde e deem os próximos passos”, avalia a cientista política Katharine Owens, da Universidade de Hartford, nos Estados Unidos.
Eles não são apenas ruidosos e incansáveis, mas travam o combate ambiental em palcos de alta visibilidade. Além de participarem de organismos internacionais, onde às vezes ocupam cadeiras, e tomarem as ruas, cultivando a vertente da desobediência civil (matam aula, fecham vias), os herdeiros de Greta seguem com renovado vigor a tática dos chamados litígios climáticos. Na quarta-feira 4, seis jovens portugueses, entre 11 e 24 anos, que relatam sofrer na pele os efeitos do aquecimento, desfiaram seus argumentos em um processo que se desenrola no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), em Estrasburgo, na França. Do outro lado do ringue estão nada menos que 32 países — membros da União Europeia, além de Rússia, Noruega, Suíça, Reino Unido, Turquia e Ucrânia.
Nunca tantos governos precisaram se defender perante o tribunal europeu, órgão que pode acabar por impor mudanças na legislação dessas nações para que ajam com mais veemência contra a emissão de gases do efeito estufa. A combativa turma também está de olho na poluição para além do Velho Continente e busca justamente a via legal para tentar um bloqueio à importação de países que não fazem sua parte em prol do planeta. A decisão final sobre o enrosco, esperada a partir de abril do ano que vem, pode fincar um marco histórico.
As consequências do aquecimento global batem à porta dessa meninada que se despencou para Estrasburgo. Além das implacáveis ondas de calor, Portugal e vizinhos observam uma escalada na ocorrência de incêndios sob temperaturas que batem recorde após recorde. “Não somos afetados apenas fisicamente. Eventos climáticos extremos geram danos à saúde mental”, explicou a VEJA a portuguesa Sofia dos Santos Oliveira, 18 anos, uma das engajadas litigantes. Uma recente pesquisa do Pew Research Center revelou que as mudanças climáticas são a maior preocupação da geração Z, que abarca os nascidos entre a década de 1990 e 2010. Eles não têm apenas o discurso inflamado, mas um senso muito prático, mergulhando até nas letras miúdas da lei. A ação que encabeçam alega que a negligência dos países na mira da corte europeia em cumprir as metas estabelecidas em Paris viola direitos humanos fundamentais, incluindo o próprio direito à vida. “Nas grandes discussões, os jovens costumam ter menos espaço. Agora, estamos à mesa com os adultos”, resume o irmão de Sofia, André, 15 anos e igualmente indignado.
Uma onda de ceticismo ronda este e outros imbróglios de mesma natureza. Os governos processados dizem que não existem provas que demonstrem riscos imediatos das mudanças climáticas para a vida ou a saúde humanas, mas os envolvidos na causa seguem apostando na estratégia jurídica. E apenas o fato de queixas juvenis ingressarem em altas cortes já é um sinal inequívoco de que seus pleitos ganham eco na sociedade. Um recém-lançado estudo da London School of Economics mostra que, desde 2015, o número de contendas climáticas dobrou nos tribunais, ultrapassando os 2 000 casos. Importante notar que 20% do total das ações se concentra entre 2020 a 2022. “Muitas vezes, como sabemos, governos e empresas só se mexem quando pressionados”, lembra Mat dos Santos, advogado-chefe da Our Children’s Trust, organização voltada para cinco litígios liderados por jovens nos Estados Unidos.
Em agosto, a firma venceu um processo apresentado por um grupo cuja faixa etária variava dos 5 anos (isso mesmo!) aos 22, o primeiro do gênero em território americano. Foi quando o tribunal de Montana, onde o carvão corresponde a 30% da matriz energética, entendeu que o estado violou a Constituição local, que prevê o “direito a um meio ambiente limpo e saudável”. Ficou acertado então que a lei será modificada para que o aquecimento global se torne um fator decisivo na hora de aprovar ou renovar projetos. Ao longo de 2024, os outros quatro casos nas mãos do Our Children’s Trust devem ser analisados pelos juízes.
O barulho dos herdeiros de Greta tem tudo para aumentar. Um estudo publicado na prestigiada Lancet, que entrevistou 10 000 crianças e adolescentes, revela insatisfação generalizada com as respostas das autoridades frente aos desafios climáticos. Uma parcela dos queixosos parte para a prática, ocupando cargos em órgãos internacionais — a exemplo do defensor da ação climática para a América Latina e o Caribe da Unicef, o colombiano Francisco Vera, de 13 anos. Também compõem o rol o ativista ambiental Jerome Foster, que se tornou aos 19 o mais jovem conselheiro da Casa Branca na história, e Jahzara Oná, 18, uma das representantes do Brasil na última conferência climática da ONU, no Egito. “Esta é uma geração que conseguiu como nenhuma outra canalizar sua angústia em ação”, ressalta Eban Goodstein, diretor do Centro de Política Ambiental da Bard College, de Nova York.
Em comum, eles são 100% contrários a qualquer projeto movido a combustível fóssil e carregam no DNA um componente antissistema, que herdaram do pioneiro Fridays for Future, de Greta. Se for preciso fechar escolas para se fazerem ouvidos, tudo bem. Como em todo movimento, há sempre uma fatia que sobressai pelo tom mais elevado, como o do grupo Just Stop Oil, cujos integrantes causaram polêmica ao colar as próprias mãos em molduras de quadros de Van Gogh e em traves de estádios de futebol. Nunca, porém, abandonaram o pacifismo, característica desta conectada geração, que se associa globalmente via redes. “Somos mais intensos porque temos menos tempo e menos espaço para erros”, disse a VEJA Grace Gibson-Snyder, 19 anos, uma das jovens por trás da ação de Montana, que cresceu em meio à natureza e testemunha no dia a dia o derretimento das geleiras do parque nacional perto de sua casa. Para ela e os outros, é impossível ignorar o problema. E solucioná-lo, no grito e na vontade, é visto como o necessário passaporte para o futuro.
Com reportagem de Paula Freitas
Publicado em VEJA de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862