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Estudiosos buscam driblar a natureza ao cultivar plantas sem luz solar

No futuro, o método poderá viabilizar a agricultura nos polos e até no espaço

Por Marília Monitchele Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 24 nov 2024, 08h00
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  • Em Perdido em Marte, Matt Damon interpreta um astronauta isolado no planeta vermelho, lutando para sobreviver até a chegada de um resgate que o leve de volta para casa. Em meio à escassez, ele recorre à criatividade e à tecnologia para cultivar batatas em solo marciano. Quase dez anos antes do previsto pelo filme, o que soava como ficção começa a ganhar contornos de realidade. A promessa atende pelo nome de eletro­agricultura e parte da premissa de que é possível cultivar plantas sem a necessidade de sol, contornando um fenômeno que está na base da existência dos vegetais e de toda a cadeia alimentar. Como? Por meio de energia elétrica renovável.

    Os cientistas apostam nesse caminho para driblar limitações como a falta de luz suficiente e fazer o verde prosperar em locais antes inimagináveis, como centros urbanos, desertos, áreas glaciais e até mesmo no espaço. O método, testado em centros de pesquisa pelo mundo, dispara reações químicas entre as moléculas de dióxido de carbono e água que nutrem os vegetais a fim de obter acetato, substância utilizada no cultivo de cogumelos, leveduras e algas, mas também passível de ser aplicada em plantações de alface, arroz, canola, pimenta e tomate, por exemplo. Embora os experimentos estejam em fase inicial, permitem sonhar com fazendas movidas a eletricidade neste ou em outros planetas. Ao superar a prova de conceito, a técnica ao menos reforça o poder adaptativo das plantas. Se em 1779 o naturalista holandês Jan Ingenhousz descobria a fotossíntese — o processo que permite aos vegetais se “alimentarem” dos raios solares —, 245 anos depois a ciência busca eliminar essa necessidade para expandir ou otimizar a produção de comida e outras matérias-primas.

    COISA DE CINEMA - Matt Damon, em Perdido em Marte: luta por sobrevivência
    COISA DE CINEMA - Matt Damon, em Perdido em Marte: luta por sobrevivência (./Divulgação)

    A ideia surpreendente por trás dessa linha de estudos tem como pano de fundo um momento prolífico de reconhecimento das habilidades e dos potenciais escondidos no reino vegetal. Nos últimos anos, vozes da botânica começaram a ampliar o conhecimento sobre nossas parceiras evolutivas. À medida que examinam as estratégias de comunicação, memorização, defesa, resi­liência e tomada de decisão das espécies enraizadas, os pesquisadores têm cada vez mais a convicção de falar em inteligência vegetal. “Se pensarmos nesse conceito como a capacidade de adaptação e aprendizado, diversos organismos podem ser considerados inteligentes, e as plantas certamente não ficam de fora”, diz a bióloga Juliane Ishida, professora da UFMG.

    Um dos principais expoentes desse movimento vicejante é o botânico Stefano Mancuso, autor do aclamado Revolução das Plantas. O italiano propõe que os vegetais possuem como se fosse um cérebro difuso, um sistema descentralizado e espalhado das raízes às folhas que teria sido crucial para seu sucesso evolutivo, a ponto de eles representarem mais de 80% da biomassa do globo. A visão de Mancuso encontra eco em outros especialistas. A ecologista italiana Monica Gagliano investiga os mecanismos de comunicação apelidados de “internet” das plantas, enquanto o espanhol Paco Calvo realiza estudos pioneiros sobre cognição vegetal. Em comum, esses esforços convergem para o objetivo de diminuir a chamada “cegueira botânica” — a ideia de valorizar apenas aquilo que pertence ao reino animal, deixando os vegetais na invisibilidade — e de pensar em soluções sustentáveis para alimentar uma humanidade que já vive desafios climáticos que poderão cercear seus horizontes.

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    PRECURSOR - Jan Ingenhousz (1730-1799): descobridor da fotossíntese
    PRECURSOR - Jan Ingenhousz (1730-1799): descobridor da fotossíntese (Colport/Alamy/Fotoarena/.)

    Se de um lado os cientistas testam como cultivar espécies sem luz solar — valendo-se das habilidades e metamorfoses das próprias plantas —, do outro a natureza já se encarrega de produzir seus feitos espantosos. Hoje se sabe que os pés de ervilha, por exemplo, assumem riscos e tomam decisões calculando a oferta de nutrientes no solo. Já a Cakile edentula, arbusto com flores de matriz americana, faz tudo pela família: chega a gerar massa maior de raízes quando há estranhos por perto para reivindicar o território aos futuros parentes. Mais recentemente, descobriu-se que algumas plantas são capazes até de “ver” e “gritar”. A Arabidopsis thaliana, parente dos brócolis, possui treze proteínas sensíveis à luz, enquanto nós carregamos apenas quatro em nossos olhos. Já a grama recém-cortada, ao liberar milhares de compostos voláteis, sinaliza pelo aroma que há perigo às companheiras de sina — um tipo de grito de alerta. Isso sem falar nas redes de fungos e raízes, exemplo de uma aliança milenar e exitosa. “O maior entendimento da forma como as plantas se comunicam, reagem e se informam pode nos trazer um grande salto tecnológico, inclusive na forma como nos relacionamos com elas”, diz o biólogo João Vicente Coffani Nunes, professor da Unesp. Com ou sem luz, apostar nesse tesouro de recursos vegetais tem tudo para ser a salvação da lavoura na própria Terra.

    Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920

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