Em Perdido em Marte, Matt Damon interpreta um astronauta isolado no planeta vermelho, lutando para sobreviver até a chegada de um resgate que o leve de volta para casa. Em meio à escassez, ele recorre à criatividade e à tecnologia para cultivar batatas em solo marciano. Quase dez anos antes do previsto pelo filme, o que soava como ficção começa a ganhar contornos de realidade. A promessa atende pelo nome de eletroagricultura e parte da premissa de que é possível cultivar plantas sem a necessidade de sol, contornando um fenômeno que está na base da existência dos vegetais e de toda a cadeia alimentar. Como? Por meio de energia elétrica renovável.
Os cientistas apostam nesse caminho para driblar limitações como a falta de luz suficiente e fazer o verde prosperar em locais antes inimagináveis, como centros urbanos, desertos, áreas glaciais e até mesmo no espaço. O método, testado em centros de pesquisa pelo mundo, dispara reações químicas entre as moléculas de dióxido de carbono e água que nutrem os vegetais a fim de obter acetato, substância utilizada no cultivo de cogumelos, leveduras e algas, mas também passível de ser aplicada em plantações de alface, arroz, canola, pimenta e tomate, por exemplo. Embora os experimentos estejam em fase inicial, permitem sonhar com fazendas movidas a eletricidade neste ou em outros planetas. Ao superar a prova de conceito, a técnica ao menos reforça o poder adaptativo das plantas. Se em 1779 o naturalista holandês Jan Ingenhousz descobria a fotossíntese — o processo que permite aos vegetais se “alimentarem” dos raios solares —, 245 anos depois a ciência busca eliminar essa necessidade para expandir ou otimizar a produção de comida e outras matérias-primas.
A ideia surpreendente por trás dessa linha de estudos tem como pano de fundo um momento prolífico de reconhecimento das habilidades e dos potenciais escondidos no reino vegetal. Nos últimos anos, vozes da botânica começaram a ampliar o conhecimento sobre nossas parceiras evolutivas. À medida que examinam as estratégias de comunicação, memorização, defesa, resiliência e tomada de decisão das espécies enraizadas, os pesquisadores têm cada vez mais a convicção de falar em inteligência vegetal. “Se pensarmos nesse conceito como a capacidade de adaptação e aprendizado, diversos organismos podem ser considerados inteligentes, e as plantas certamente não ficam de fora”, diz a bióloga Juliane Ishida, professora da UFMG.
Um dos principais expoentes desse movimento vicejante é o botânico Stefano Mancuso, autor do aclamado Revolução das Plantas. O italiano propõe que os vegetais possuem como se fosse um cérebro difuso, um sistema descentralizado e espalhado das raízes às folhas que teria sido crucial para seu sucesso evolutivo, a ponto de eles representarem mais de 80% da biomassa do globo. A visão de Mancuso encontra eco em outros especialistas. A ecologista italiana Monica Gagliano investiga os mecanismos de comunicação apelidados de “internet” das plantas, enquanto o espanhol Paco Calvo realiza estudos pioneiros sobre cognição vegetal. Em comum, esses esforços convergem para o objetivo de diminuir a chamada “cegueira botânica” — a ideia de valorizar apenas aquilo que pertence ao reino animal, deixando os vegetais na invisibilidade — e de pensar em soluções sustentáveis para alimentar uma humanidade que já vive desafios climáticos que poderão cercear seus horizontes.
Se de um lado os cientistas testam como cultivar espécies sem luz solar — valendo-se das habilidades e metamorfoses das próprias plantas —, do outro a natureza já se encarrega de produzir seus feitos espantosos. Hoje se sabe que os pés de ervilha, por exemplo, assumem riscos e tomam decisões calculando a oferta de nutrientes no solo. Já a Cakile edentula, arbusto com flores de matriz americana, faz tudo pela família: chega a gerar massa maior de raízes quando há estranhos por perto para reivindicar o território aos futuros parentes. Mais recentemente, descobriu-se que algumas plantas são capazes até de “ver” e “gritar”. A Arabidopsis thaliana, parente dos brócolis, possui treze proteínas sensíveis à luz, enquanto nós carregamos apenas quatro em nossos olhos. Já a grama recém-cortada, ao liberar milhares de compostos voláteis, sinaliza pelo aroma que há perigo às companheiras de sina — um tipo de grito de alerta. Isso sem falar nas redes de fungos e raízes, exemplo de uma aliança milenar e exitosa. “O maior entendimento da forma como as plantas se comunicam, reagem e se informam pode nos trazer um grande salto tecnológico, inclusive na forma como nos relacionamos com elas”, diz o biólogo João Vicente Coffani Nunes, professor da Unesp. Com ou sem luz, apostar nesse tesouro de recursos vegetais tem tudo para ser a salvação da lavoura na própria Terra.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2024, edição nº 2920