O deserto do Atacama, localizado no norte do Chile, entre o Oceano Pacífico e a Cordilheira dos Andes, abriga algumas das paisagens mais espetaculares da América do Sul. Seus vulcões nevados, dunas a perder de vista, lagoas azuladas, cânions profundos e gêiseres fervilhantes formam um cenário que atrai todos os anos 1 milhão de turistas de diversas partes do mundo. Até pouco tempo atrás, era um paraíso natural praticamente intocado. Mas a situação vem mudando em velocidade preocupante. Uma parcela de seus mais de 100 000 quilômetros quadrados vem sendo tomada pelo descarte de roupas, carros e outros rejeitos a ponto de ser apelidada de “lixão do mundo”.
Boa parte dos resíduos entra pela cidade de Iquique, a 1 800 quilômetros da capital, Santiago. A Zona Franca de Iquique, ou Zofri, como também é conhecida, é um importante centro de comércio livre de impostos da América do Sul. Trata-se da porta de entrada para milhões de roupas de segunda mão descartadas dos Estados Unidos, Europa e Ásia que ajudam a alimentar o mercado chileno de brechós. O problema é que ao menos metade das 60 000 toneladas anuais que entram no país vai parar no deserto, em pilhas enormes. Em outros municípios da região, como Alto Hospicio, 85% das roupas vão parar no lixão a céu aberto. As imagens impressionam e mostram o tamanho da devastação. Os aterros clandestinos se tornaram os cemitérios da indústria de fast fashion, conhecida pelas peças de qualidade inferior. Mas há de tudo, de marcas esportivas como Nike a grifes como Hugo Boss e Chanel. São peças que podem levar até 200 anos para se decompor, a depender dos materiais usados em sua fabricação.
Embora as roupas sejam o problema mais visível, há outros produtos que entram pela Zona Franca e também vão parar no Atacama. É o caso de carros e pneus. São veículos — latas-velhas, na verdade — enviados por outros países do continente, principalmente Peru, Bolívia e Paraguai, e largados no empoeirado deserto. Pilhas de pneus são usadas como divisórias, e o cenário pós-apocalíptico parece saído dos filmes Mad Max.
Não há cuidado com a reciclagem e os ativistas ambientais já se preocupam com o impacto do descarte irregular. Há muito tempo o delicado ecossistema da região é fonte de pesquisas. Suas características geológicas únicas, semelhantes às de Marte, levaram a Nasa a testar no Atacama o desempenho dos rovers, os robôs que exploram o solo marciano. Apesar da aridez absoluta, o deserto tem rica flora e uma fauna composta por formas de vida microscópicas extremas, répteis, insetos e pássaros, além de alguns mamíferos que se aventuram por territórios menos ásperos. O prejuízo causado pelo depósito de lixo é imenso. Além de poluir o solo, pilhas de rejeitos são incendiadas e a fumaça tóxica afeta a vida das espécies que lá residem. Variedades de cactos já foram extintas graças à ação humana. Se a ação continuar, outras vidas poderão ter o mesmo destino.
Até agora, pouco tem sido feito para resolver a questão. Prefeitos locais culpam o governo federal pela falta de ação, enquanto ativistas apontam a falta generalizada de interesse pelo tema. Os ambientalistas dizem que o lixo costuma ser descartado em áreas ocupadas por camadas mais pobres da população e que habitualmente são negligenciadas pelas autoridades. Há ainda outra agravante: inúmeras mineradoras exploram o deserto em busca de cobre e elas têm por hábito abandonar resíduos depois de exaurir a terra. Se nada for feito rapidamente, um dos mais belos paraísos naturais do planeta corre o risco de ver sua exuberante paisagem ser tomada por lixões a céu aberto.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823