É tradição antiga. Há mais de 1 000 anos, a China presenteia países amigos com seu animal-símbolo e tesouro nacional, o panda-gigante. Os primeiros registros do mimo diplomático remontam ao século VII, durante a dinastia Tang. Em 685, a imperadora Wu Zetian teria enviado dois ursos ao imperador japonês Tenmu. Depois de um longo hiato, a prática foi retomada em meados do século XX e acabou por selar, em meio à Guerra Fria, o retorno das relações entre Pequim e o os Estados Unidos. Como sinal de boa vontade, Mao Tsé-tung enviou os brincalhões alvinegros Hsing-Hsing e Ling-Ling para o Zoológico Nacional, em Washington, depois da visita histórica do presidente Richard Nixon ao país, em fevereiro de 1972. Uma década mais tarde, contudo, acabou a festa da gratuidade. Os bichos passaram a ser “alugados” por valores que variam entre 500 000 dólares e 1 milhão de dólares anuais. A relação mercantil não impediu que os simpáticos grandalhões atravessem o mundo em gesto de companheirismo.
Contudo, as recentes oscilações da geopolítica global, de polarização exacerbada, tornaram a vida da turminha mais difícil — e a realidade se mostrou bem menos fofa que os pandas. No ano passado, a China pegou de volta quatro ursos que viviam nos Estados Unidos. O recall deixou o país com apenas outros quatro animais, todos em um parque de Atlanta. A grita dos fãs e visitantes regulares foi imensa. Reação semelhante aconteceu na Escócia, onde foram recolhidos dois exemplares que viviam em Edimburgo havia mais de uma década. E dá-lhe genuína comoção.
A boa nova, em movimento político que aponta para ares respiráveis, ou menos mercuriais, no tabuleiro internacional: a China, por meio da Associação de Conservação da Vida Selvagem, responsável pelos bichos, acaba de anunciar acordos com os zoológicos de Madri, na Espanha, e San Diego, nos Estados Unidos. E lá vão os mamíferos viajar. Um dos pandas selecionados para ficar na Califórnia seria descendente de Bai Yun e Gao Gao, célebres pela rara prole, resultado de um dos mais notáveis sucessos reprodutivos entre ursos mantidos em cativeiro. Estão em curso também consultas com os zoos de Washington e de Viena.
A escolha por Espanha, Estados Unidos e Áustria é aceno sentimental, dado estarem entre os primeiros parceiros dos chineses. Da cooperação, nos últimos anos, antes do interregno agora encerrado, resultaram 28 novos filhotes — pelo contrato, os bebês pandas são propriedade chinesa e devem retornar ao país antes de completar 4 anos. Segundo as autoridades, essas trocas fazem parte dos “esforços para intensificar a proteção das espécies em nível global”. E, claro, são atalho para apertos de mão em torno de negociações mais amplas. “Os pandas têm sido enviados para destinos que acompanham relevantes contratos comerciais, iniciativas diplomáticas e declarações favoráveis sobre questões de interesse nacional chinês envolvendo territórios ou regiões em disputa”, diz Alana Camoça, professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
A China já cedeu, na história recente, ursos a países como Rússia, Finlândia e Malásia, e também recebeu agrados, como os elefantes do Vietnã. Ao todo, cerca de vinte países hospedam simpáticos pandas chineses, que costumam fazer sucesso em vídeos divertidos pela internet e nas redes sociais. “A diplomacia do panda fortalece o compromisso da política externa chinesa de promover uma imagem positiva do país globalmente, buscando superar narrativas como as do ‘perigo amarelo’ ou ‘ameaça chinesa’”, resume a professora Camoça.
Convém não desdenhar, por óbvio, da relevância ambiental, de conservação da espécie, hoje com estimados 1 800 indivíduos. Além do número crescente de pandas selvagens (veja no mapa), o envio dos animais a outros cantos proporciona uma variedade genética maior. Há relatos, porém, de maus-tratos, crime lesa-pátria que, evidentemente, viola as normas acordadas. Houve denúncias recentes de descaso com pandas enviados para a Tailândia, ainda em investigação.
Celebre-se, portanto, a boa ideia milenar da China, cuja estratégia tem dado frutos modernos. A Austrália, por exemplo, cultiva a “Diplomacia do Coala”, que ficou em evidência durante a reunião de líderes do G20, em 2014. Na ocasião, chefes de Estado receberam o animal para acariciá-lo. Alguns exemplares foram enviados como presente. Caso de Singapura, que os recebeu como símbolo dos cinquenta anos de amizade entre os dois países. Não há dúvida: os afáveis embaixadores animais são um alívio em meio às crescentes tensões bélicas e militares, agradam a crianças e adultos — e indicam haver ainda um pouco de bom senso na humanidade.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882