Os mitos e verdades sobre o Ozempic, medicamento que virou fenômeno
O remédio ganhou holofote pelo uso desmedido e supostas reações adversas, mas também inaugura era de tratamentos que miram muito além da perda de peso
![A CANETA DA FAMA - Semaglutida: a medicação virou febre e desabasteceu farmácias](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/2RCF298_fotoarena.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
A cada época, seu remédio. Na ânsia por resolver as agruras físicas e psíquicas da humanidade, é histórica e notável a busca de soluções contra as doenças mais prevalentes e preocupantes, que encurtam a qualidade e a expectativa de vida. Foi com essa premissa que as farmacêuticas nortearam suas pesquisas nos últimos 120 anos, trazendo ao mundo medicações para as dores do corpo e da alma — algumas menos, outras mais ruidosas. E assim a população vem desfrutando de princípios ativos que revolucionaram a medicina e marcaram a sociedade, como Aspirina (analgésico), Prozac (antidepressivo), Lipitor (comprimido que abaixa o colesterol) e Viagra (a pílula que combate a impotência sexual). Nos últimos meses, porém, o nome que domina as buscas na internet e os pedidos nas drogarias é um só, Ozempic, droga injetável originalmente criada para o diabetes, mas que tem um bem-vindo e sedutor efeito colateral, o emagrecimento. Sinal dos tempos: a demanda pelas canetas de aplicação semanal vai ao encontro dos números estratosféricos do excesso de peso no planeta e do padrão de beleza disseminado pelas redes sociais.
O Ozempic é o mais famoso membro de uma classe recente de medicamentos, os análogos de GLP-1. Eles imitam o hormônio conhecido por essa sigla que naturalmente é produzido pelo intestino, desencadeando uma cascata de reações bioquímicas por trás da sensação de saciedade, do esvaziamento mais lento do estômago e da liberação otimizada de insulina para captar a glicose no sangue (veja na ilustração). As primeiras injeções, de uso diário, foram desenhadas para quem tem diabetes tipo 2. E o Ozempic mantém essa proposta, mas com aplicação semanal. Só que o poder de eliminar os quilos extras — ação decisiva inclusive para frear o diabetes — caiu nas graças de celebridades e pacientes ávidos por uma prescrição off label. Aí, até quem não estava realmente acima do peso quis tirar proveito para chapar a barriga. Resultado: as vendas do remédio explodiram globalmente.
Os análogos de GLP-1 são, sem dúvida, um trunfo e uma resposta da ciência à pandemia de diabetes e obesidade. Após um hiato de inovações nessa área — com drogas que reduziam no máximo 6% do peso —, eles vieram bater índices superiores a 15%. Aprofundando-se nas pesquisas com a semaglutida (o princípio do Ozempic), o laboratório Novo Nordisk testou e validou uma versão em dosagem diferente especialmente para pessoas com obesidade, o Wegovy. O furor causado pela dupla foi tão grande que houve desabastecimento no mercado americano — e a onda se repetiu no Brasil, onde o Wegovy foi aprovado pela Anvisa, mas ainda não é comercializado. A corrida pelo Ozempic, tantas vezes para fins estéticos, enxugou os estoques das farmácias — situação que provocou a manifestação de entidades médicas, as quais sublinham a necessidade de usar a medicação com indicação baseada nos estudos e acompanhamento profissional. Nesse cenário conturbado, a Novo Nordisk decidiu postergar o lançamento do Wegovy no país, inicialmente previsto para este semestre, para 2024. “Estamos priorizando a segurança dos pacientes que precisam do tratamento continuado em caso de superdemanda e um eventual desabastecimento”, diz Priscilla Mattar, diretora médica da farmacêutica.
Mesmo com os alertas dados, a procura pelo Ozempic não arrefeceu. Segundo a plataforma Consulta Remédios, foi registrado um aumento de 91% nas buscas pelo medicamento nas farmácias neste semestre em comparação ao segundo semestre de 2022. E o imbróglio do mau uso de uma boa ferramenta da medicina ganhou densidade com a difusão do produto e de supostos eventos adversos desencadeados por ele. No mês passado, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) anunciou a abertura de uma investigação com a semaglutida e sua antecessora, a liraglutida, após relatos de pensamentos suicidas e de automutilação de três pacientes na Islândia. O elo foi rapidamente refutado tanto pela empresa quanto por autoridades médicas. “Não há plausibilidade para essas alterações de humor, porque o mecanismo de ação não interfere nesse sistema cerebral”, diz Paulo Miranda, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).
O monitoramento segue em curso. Outra preocupação — de uma suposta associação com o câncer, vista em experimentos com camundongos — tampouco foi observada em humanos, ao menos por ora. Nem mesmo o que ganhou manchetes como “cara de Ozempic”, com fotos e relatos de pessoas que teriam ficado com feições murchas ou cadavéricas devido ao emagrecimento, se sustenta como efeito colateral direto do remédio.
Nessa seara, é crucial salientar: o que pode ser afirmado sobre a segurança da semaglutida está dentro do escopo dos estudos clínicos e das indicações previstas em bula. Outro ponto seminal é que, para conquistar e manter os resultados desejados na balança e nos exames de sangue, a medicação não faz milagre. Deve compor um plano de medidas que ainda envolve a adesão a uma alimentação balanceada e à prática de exercícios. Não se trata de injeção mágica. No entanto, é inegável que a categoria da semaglutida abriu caminho para uma nova geração de fármacos potentes para emagrecer o planeta. E há uma demanda reprimida aí: hoje, mais de 1 bilhão de pessoas vivem com obesidade no mundo, estando mais predispostas a diabetes, doenças cardiovasculares e alguns tipos de câncer. Nesse front, a semaglutida não estará sozinha. Medicamentos que interagem com outros hormônios com ações semelhantes ou sinérgicas à do GLP-1, como o GIP e o glucagon, têm exibido resultados ainda mais animadores. Prova recente disso vem de uma pesquisa com a tirzepatida (Mounjaro), da farmacêutica Eli Lilly, que aguarda liberação pela Anvisa e já é comercializada lá fora. Após administração por 84 semanas, ela levou a uma perda de peso média de 26%, índice inédito e muito próximo da cirurgia bariátrica.
![GettyImages-1453154588.jpg DEMANDA - Mercado para perda de peso: 1 bilhão de obesos pelo mundo](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/GettyImages-1453154588.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
No mais recente congresso da Associação Americana de Diabetes (ADA, na sigla em inglês), em junho, foram apresentadas outras inovações, reunindo dois ou mais princípios ativos e demonstrando alta eficácia no emagrecimento. Ou seja, é de esperar que o arsenal contra a obesidade — encorpado há pouco com uma medicação com mecanismo de ação diferente, focada no “comer emocional” (o Contrave, da Merck) — fique ainda mais poderoso. Contudo, é preciso calibrar as expectativas tendo em vista o preço dessas drogas ao chegar ao mercado. “O acesso é um desafio. O Brasil não tem uma política de Estado para obesidade, como ocorreu com HIV e tabagismo”, diz o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP de Ribeirão Preto. Enquanto já se discute uma possível incorporação de análogos de GLP-1 ao SUS, os estudos com a semaglutida avançam até para outros domínios.
![GettyImages-1390677630.jpg OZEMPIC FACE - Viralizou nas redes: rostos murchos são consequência do emagrecimento](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/GettyImages-1390677630.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
Sim, ela é investigada como tratamento para reduzir gordura no fígado, combater o alcoolismo (o remédio parece minguar a vontade de beber) e enfrentar o Alzheimer. Neste último caso, pesquisas buscam entender e confirmar o efeito da molécula na contenção das placas que se depositam e destroem os neurônios e a cognição. “Ela pode atuar como um antioxidante e anti-inflamatório e evitar esses processos que degeneram o cérebro”, diz o neurologista Ivan Okamoto, do Hospital Israelita Albert Einstein (SP). Fato é que todo medicamento tem efeitos colaterais. A boa notícia é que a ciência não só tem cercado aqueles claramente negativos como colhido frutos com os potencialmente positivos.
Publicado em VEJA de 9 de agosto de 2023, edição nº 2853