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#38 A NOSTALGIA: Viagem de volta

Por que a maré de banzo histórico, que favoreceu a eleição de Trump e o Brexit inglês, é diferente das outras — e até onde ela pode nos levar

Por Edoardo Ghirotto
Atualizado em 21 set 2018, 07h01 - Publicado em 21 set 2018, 07h00
DIA DE AÇÃO DE GRAÇAS - Os EUA do início dos anos 1940 numa ilustração de Norman Rockwell: antes era assim (Library of Congress/Corbis/VCG/Getty Images)

As esperanças podem desapontar, mas a nostalgia é irrefutável. Quando o cientista político da Universidade de Columbia Mark Lilla publicou seu livro A Mente Naufragada — Sobre o Espírito Reacionário (2016), o conceito da idealização do passado como discurso de cooptação imbatível diante dos males do presente ajudou a explicar fenômenos aparentemente inexplicáveis. A vitória do Brexit na Inglaterra, a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e a ascensão do Estado Islâmico no mundo, por exemplo, tinham em comum o fato de estar ancoradas numa fantasia de retorno a um período edulcorado pela poeira do tempo. “Toda grande transformação social deixa para trás um novo Éden que serve como objeto de nostalgia para alguém”, escreveu o americano.

A nostalgia é um impulso fundamentalmente reacionário, diz Lilla, já que nega o futuro e se baseia na crença de que houve um passado — próximo ou distante — em que as misérias do presente não existiam. “Onde alguns veem o rio do tempo correr, outros enxergam no fluxo da corrente as ruínas de um paraíso perdido.” Valeram-se dessa crença Recep Erdogan, na Turquia, com seu discurso de retomada da glória do Império Turco-Otomano, e Narendra Modi, na Índia, com sua exaltação da civilização anterior à chegada dos muçulmanos ao país. O terrorismo islâmico, na visão do cientista político, é o exemplo mais acabado do que é capaz de produzir a “era da nostalgia”. Ao perseguirem a fantasia da volta a um califado em que imperavam a pureza religiosa e a força militar, terroristas islâmicos buscam restaurar sua Idade do Ouro. Como não conseguem fazê-­lo por persuasão, fazem-no pela força.

No início do ano, o Brasil deixou registrada sua cota de adesão à onda nostálgica. No auge da greve dos caminhoneiros, uma pesquisa do Ibope constatou que um terço da população era favorável a uma intervenção militar. A ascensão de Jair Bolsonaro, capitão da reserva do Exército e apoiador do golpe de 1964, é mais um dado a reforçar o espírito desses tempos. Não há, porém, nenhum ineditismo nisso. Voltas ao passado são frequentes no curso da humanidade.

Na virada do século XIX para o XX, despontou na Alemanha um movimento conhecido como Wandervogel (“Pássaro Errante”), em que jovens usavam roupas no estilo medieval e acampavam nas florestas para escapar da industrialização que se acelerava nas cidades. Sentimento semelhante se viu na década de 60, quando os hippies faziam protestos contra o capitalismo e pregavam a volta a um passado de convivência comunitária. O sociólogo Paulo Baía, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, diz que a nostalgia tomou parte do Brasil logo depois da troca da monarquia pela república. “Havia nos anos 1910 essa saudade do império, que se dava sobretudo em razão das incertezas que se apresentavam com o novo regime”, afirma. Outra passagem nostálgica aconteceu com o governo de Juscelino Kubitschek, que, sucedido por crises e uma ditadura longeva, ganhou ares de “anos dourados”.

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A onda atual tem ao menos um elemento original — o ressentimento. Grupos que se sentem às margens da globalização, que se desencantaram com as estruturas políticas tradicionais e foram, em algum aspecto, negativamente afetados pelas novas tecnologias são presas fáceis do rancor. “Houve uma aceleração nas mudanças em todo o mundo: nossas famílias mudaram, nossa noção de sexualidade mudou, nossa noção de possibilidades mudou, nossa relação com o resto do mundo mudou”, diz Lilla. Daí essa “sensação global de deslocamento e de que o presente não faz sentido e é insuportável”.

É dos grupos ressentidos que parte o endosso a discursos populistas que prometem recuperar supostas glórias do passado. “Há uma crise que leva camadas da população a perder as posições que tinham ou imaginavam ter”, afirma a historiadora Heloísa Starling, da Universidade Federal de Minas Gerais. Esse sentimento de perda, objetiva ou difusa, gera o que Lilla chama de “sentido de traição histórica”. Elemento presente em diversas sociedades contemporâneas e motor de ideias reacionárias que atraem adeptos em todo o mundo, o fenômeno implica um risco ainda maior: condenar o futuro em nome de um passado que nunca existiu.

Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601

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