Para onde quer que se olhe, lá está ele, saltando sobre as letras do teclado minúsculo. O polegar, aquele dedo da mão praticamente sem uso individual, vê-se agora alçado à posição de protagonista imprescindível da era digital (vem de digitus, a palavra latina que deu origem a dígito, digitar e… dedo). Não que o dedão fosse dispensável. Pelo contrário. As outras quatro extensões da mão precisam da ajuda dele para desempenhar boa parte de suas funções. Mas sozinho ele parecia fadado a fazer sinal de positivo e negativo e a servir de assinatura para analfabetos. A primeira chacoalhada nessa existência secundária se deu com a disseminação entre a garotada do controle dos videogames movido a pancadas frenéticas de polegares. A transposição para a tela do smartphone ocorreu num estalar de dedos (gesto, por sinal, que não se faz sem o polegar) — daí a intimidade entre máquina e dedo ser muito maior para quem tem menos de 40 anos.
A importância do polegar teve origem milhões de anos atrás, quando uma mutação genética determinou que sua posição na mão de alguns primatas seria oposta à dos demais dedos. Deu-se aí uma revolução. Nos ancestrais do homem, ele ganhou uma estrutura — oito músculos, sendo quatro na palma da mão, e um feixe de tendões — que permitiu algo extraordinário: o movimento de pinça, e, consequentemente, o uso das mãos para agarrar coisas com uma precisão única. De todos os dedos, só o polegar faz rotação e é capaz de ficar na posição perpendicular. Por causa dessas particularidades, ele é o responsável por mais de 40% da mobilidade manual. A Associação Médica Americana avalia que sua perda equivale à amputação simultânea e completa dos dedos médio, anular e mínimo. “Em caso de acidente, recompor o polegar é prioridade porque sem ele o indivíduo pode perder a capacidade de trabalho”, diz o cirurgião Yussef Abdouni, diretor da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia.
Assoberbado, o polegar sempre esteve sujeito a inflamações e desgaste muscular, principalmente em quem manuseia ferramentas pesadas e com vibração intensa, como britadeiras e furadeiras. Agora, porém, a sobrecarga da digitação rendeu ao pobre dedo uma aflição de nome específico, texting tendinites, que vem a ser a tendinite decorrente do exercício excessivo de teclar nos smartphones. Segundo Abdouni, a quantidade de pessoas com esse problema, sobretudo adolescentes, triplicou nos últimos três anos. O smartphone assumiu inclusive os dois papéis originais dos polegares. O dedo para cima é símbolo do “curtir”, a marca registrada dos usuários do Facebook; e a imagem digital do dedão virou senha de acesso em modelos mais novos de celular, introduzindo a boa e velha digital nos usos e costumes do século XXI.
Embora a vida sem polegares pregados na telinha hoje pareça impossível, os especialistas dizem que seu apogeu está passando: a tendência é que, aos poucos, eles regressem a seu lugar nas sombras, como auxiliares de luxo. Nos smartphones, a digitação deve perder vez para o comando de voz. A leitura de digitais, por sua vez, cederá lugar ao reconhecimento facial, observa o consultor Fábio Gandour, que trabalhou na IBM por trinta anos e esteve à frente do laboratório de pesquisa e inovação da empresa.
O polegar já foi desbancado nos caixas eletrônicos e na abertura de cancelas pelo indicador e, alternativamente, qualquer outro dedo que não ele, por causa da posição do sensor. A própria tecnologia de reconhecimento através de digitais está em xeque, ameaçada por novos parâmetros de identificação individual como geometria da face, mapeamento da íris, identificador de voz e, numa vertente que parece coisa de filmes de ficção científica, padrões de comportamento.
No CIAB Febraban, o maior congresso de tecnologia bancária do país, realizado em junho em São Paulo, o tema mais debatido foi justamente o avanço nas técnicas de reconhecimento a partir da observação de padrões, como a maneira de a pessoa segurar o celular, rolar a tela ou movimentar o mouse no computador. “Você é a sua senha”, alardeava o material institucional. Até na área criminalística, que nunca prescindiu do pozinho revelador das impressões digitais, os vestígios de DNA — na saliva, na guimba do cigarro, nos fragmentos de pele — são cada vez mais usados para desvendar crimes e identificar autores. O mais provável, portanto, é que aos poucos o polegar perca o protagonismo e volte a ser parte (essencial) de um quinteto. Mas a condição extraordinária de símbolo universal de positivo, bem, essa talvez nem a tecnologia lhe roube.
Publicado em VEJA de 26 de setembro de 2018, edição nº 2601