São Paulo abre debate sobre limites e riscos do celular na sala de aula
Afinal, a proibição seria o melhor remédio (amargo e efetivo) para frear a dependência das telas entre crianças e adolescentes?
Em pouco menos de duas décadas, um discreto aparelho que cabe na mochila ou no bolso revolucionou a forma de comunicar-se, divertir-se e até estudar. Mas o que um dia pareceu ser um passatempo tranquilo para os pais — com a vantagem de permitir monitorar os filhos fora de seu alcance — transformou-se numa espécie de abdução pelas telas, drenando cada vez mais momentos de interação social, tempo ao ar livre e atenção em sala de aula. Se por um lado é inegável o mundo de conhecimentos e oportunidades que um smartphone abre, por outro ganham evidência os reveses ao desenvolvimento físico e psicológico que o uso excessivo pode desencadear. Eis o impasse em que a tecnologia, hoje onipresente, instalou as famílias e as escolas. Para tentar regular (e moderar) o acesso, prevenindo ao menos as repercussões na educação, o Poder Legislativo — de cidades e países — tem passado a arbitrar sobre a presença dos celulares nas instituições de ensino. Nessa direção, São Paulo se tornou, na última terça-feira, o primeiro estado brasileiro a proibir o aparelho nos colégios — regra à qual o município do Rio de Janeiro já tinha aderido. Projeta-se que uma lei nacional será sancionada em breve no Congresso. Afinal, seria esse o melhor remédio (amargo e efetivo) para frear a dependência das telas entre crianças e adolescentes?
A decisão, adiante-se, é cercada de controvérsias. Nas escolas paulistas, a norma depende da assinatura do governador e deve entrar em vigor no próximo ano letivo. Em resumo, ela barra qualquer dispositivo eletrônico com acesso à internet dentro das salas de aula e nos intervalos, em escolas públicas e particulares. A restrição uniu políticos de partidos opostos como PL e PSOL e passou adiante no Legislativo paulista sem qualquer manifestação contrária. “O celular desvia a atenção do aluno da aula e atrapalha a socialização nos intervalos”, diz a deputada Marina Helou (Rede), autora do projeto. A medida atende também a uma exigência das escolas públicas, onde mais de 90% dos professores e gestores afirmam ser favoráveis à proibição.
A lei não é uma regulação que visa abolir o recurso à tecnologia — algo que seria contraproducente. Na verdade, prevê a interação dos alunos com as telas apenas nas atividades pedagógicas e sob orientação dos docentes em todos os níveis da educação básica. Também são previstas exceções, como a permissão para estudantes que precisam do aparelho por uma questão de saúde — há aplicativos que, por exemplo, gerenciam o controle do diabetes. A redação da proposta de veto ao celular foi embasada em pesquisas como o último Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). O levantamento internacional revelou que os jovens que ficaram até uma hora por dia no celular tiveram 49 pontos a mais em matemática do que os que navegaram de cinco a sete horas. “A proibição é bem-vinda porque poucos estabelecimentos estão olhando para o problema de forma responsável”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco, da USP, que estuda e trata pessoas com dependência digital.
Ainda que a internet alargue as possibilidades e fronteiras do ensino, investigações científicas indicam que o aprendizado pelas telas não é superior ao oferecido pelos livros. Pelo contrário, há menor atenção na leitura e absorção de conteúdo. A decisão tomada em São Paulo integra, na realidade, um desafio global: o de moderar o uso do aparelho (e de computadores e videogames). Sabe-se, pelas experiências mundo afora, que obrigar os alunos a manter o celular na bolsa ou numa caixa sobre a mesa do professor não é tarefa fácil de implementar. Contudo, vai encorpando o número de nações com alguma resolução a respeito. Na França, Espanha, Grécia, Suíça e México, a lei proíbe que estudantes de até 15 anos usem qualquer aparato com conexão à internet nos estabelecimentos. Na Alemanha, Itália, Reino Unido e Holanda, isso tem caráter de recomendação. O fato é que ao menos sessenta países fazem algum tipo de restrição, e a tendência ganhou força com o posicionamento da Unesco a favor do banimento de smartphones das escolas.
No Brasil, alguns colégios particulares já adotam medidas que bloqueiam o uso, ao menos durante as aulas. Para muitos médicos, a medida faz sentido. “É fundamental que crianças e adolescentes tenham experiências e relações realmente presenciais”, diz a pediatra Ana Escobar, professora da USP e autora do livro Meu Filho Tá Online Demais (Manole). “A vida virtual não pode substituir essa vivência”, afirma a médica, que tem mais de 3 milhões de seguidores nas redes sociais e dá consultorias a instituições de ensino. Os pais também estão preocupados com a sobrecarga virtual. Um dos principais representantes dessa vertente é o Movimento Desconecta, formado originalmente por um grupo de 400 pessoas cujos filhos estudam em um colégio particular de São Paulo. Influenciados pelo livro do psicólogo americano Jonathan Haidt, o best-seller A Geração Ansiosa (Companhia das Letras), que acusa um colapso na saúde mental dos mais jovens causado pela hiperconectividade, os responsáveis fizeram um pacto: não dar celular aos filhos antes dos 14 anos e permitir o acesso às redes sociais só depois dos 16. O acordo virou uma proposta aberta a todos os brasileiros e se espalhou por 22 escolas.
O ponto é que a vida (entre telas) não se restringe ao ambiente de aprendizado. No mundo ideal, as boas práticas e a temperança digital devem começar dentro de casa. “E, para isso, nós, adultos, precisamos nos reconhecer como viciados em telas”, diz a cofundadora do Desconecta, Antonia Brandão Teixeira, mãe de dois filhos, um de 3 anos e outro de 11, nenhum deles de posse de um celular. O mais velho tem acesso à internet pelo computador, sempre sob supervisão dos pais. Ainda que a conectividade tenha propósitos pedagógicos — algo escancarado durante a pandemia —, o universo de conteúdos impróprios e contatos perigosos a que mentes ainda não totalmente formadas estão expostas é o que faz Antonia e outros responsáveis limitarem o aparelho.
No entanto, há especialistas que encaram a proibição em casa ou nas escolas como um remédio ruim. Para eles, leis como as aprovadas em São Paulo apenas achatam o problema e jogam no lixo o caminho educativo. “A proibição ampla passa por cima de muitos aspectos, como quem está usando e a forma utilizada”, diz Mariana Ochs, coordenadora da EducaMídia, empresa que desenvolve a cultura digital no ensino. É evidente que os mais jovens sabem navegar na internet. O que precisam é criar o senso crítico para equilibrar o tempo e escapar das bolhas e das armadilhas plantadas por pessoas e algoritmos. Talvez o letramento digital, uma habilidade cada vez mais discutida hoje, mereça virar disciplina escolar — com ou sem um smartphone por perto.
Publicado em VEJA de 15 de novembro de 2024, edição nº 2919