Aos poucos, com mais ou menos alarde, em maior ou menor velocidade, os recursos de inteligência artificial (IA) vão se infiltrando na vida cotidiana. Ajudam a definir as preferências culturais, criam padrões para sistemas de segurança e estimulam o consumo com base nos hábitos de cada pessoa. Agora, estão sendo usadas, pasme, como mediadoras da espiritualidade, treinadas para fornecer respostas com base em textos sagrados.
Há uma série de novas tecnologias que usam a IA para impulsionar textos sagrados, como o BibleGPT, plataforma que usa o sistema ChatGPT para sugerir trechos do livro sagrado como respostas a questionamentos — de grandes dúvidas da humanidade a temas mais mundanos, como a recomendação de fazer uma prece enquanto cuida das tarefas de casa. Há versões também para a Torá judaica e o Alcorão muçulmano.
É um passo interessante demais para ser desdenhado, por “facilitar” a relação das pessoas com a religião. Para especialistas em teologia e comportamento humano, é uma oportunidade de aprofundar o estudo dos textos sagrados, criando correlações entre passagens distintas e ampliando as leituras possíveis. A tecnologia vem sendo aplicada também a outras formas de crença, para além das religiões constituídas e organizadas, como a astrologia e o tarô. Existem vários sites que usam sistemas de IA para fornecer mapas astrais, leituras de cartas e conselhos diversos para as mazelas do dia a dia. É um novo capítulo na longa relação entre a internet e as atividades divinatórias, que inclui a popularização do horóscopo da astróloga americana Susan Miller e as leituras de baralhos ciganos. São, a rigor, usos inofensivos da tecnologia, e em alguns aspectos até mesmo educativos. “A IA pode orientar o processo de discernimento das consciências, separando e identificando virtudes e vícios”, afirma Felipe Sardinha Bueno, mestre em teologia e professor do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (Itesp).
Em um contexto mais amplo, no entanto, a IA aplicada à religião também oferece riscos. O papa Francisco, dado a apreciar inovações, se manifestou a favor do potencial transformador dos algoritmos, mas com ressalvas. “Tenho certeza de que esse potencial só será concretizado se houver um compromisso constante e consistente por parte dos desenvolvedores dessas tecnologias em agir com ética e responsabilidade”, disse o pontífice em março, após ter sido alvo de uma montagem fotográfica que girou o mundo, ele vestido com um elegante sobretudo branco, sintético.
Há, sim, delicados nós éticos. Sem a mediação de seres humanos, a interpretação dos textos sagrados feita por robôs espertos pode dar origem a versões distorcidas e potencialmente perigosas das doutrinas. “Dependendo de como os conteúdos são elaborados, difundidos e assumidos na internet, poderiam resultar em um aumento de visões radicais”, diz Sardinha Bueno. “Podem ganhar relevância olhares preconceituosos e até contraditórios com aquilo em que se acredita.”
Na maior parte dos casos, porém, o objetivo dessas plataformas é bem-intencionado — e convém não ampliar os problemas. São ferramentas que pretendem aproximar a espiritualidade das pessoas, em um cenário em que as beatitudes vêm perdendo importância para uma parcela crescente da população. Nos Estados Unidos, um estudo feito pelo Instituto de Pesquisa de Religião Pública apontou que apenas 16% dos americanos consideram a religião o aspecto mais importante de suas vidas — há dez anos, a fatia era de 20%. De tempos em tempos, movimentos jogam luz sobre diferentes aspectos da espiritualidade. Nos anos 1960, os Beatles viajaram à Índia e se encantaram com a meditação transcendental de Maharishi Mahesh Yogi. Embora tenham se decepcionado com o líder logo depois, envolto em posturas tortas, ajudaram a provocar um crescimento do interesse pela prática e pelo estudo das linhas orientais no Ocidente. O modismo passou, mas o impacto permaneceu. Os novos dispositivos espirituais podem seguir caminho semelhante, até que caduquem.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871