Aqueles que primeiro se aventurarem na utilização do Vision Pro, os óculos de realidade aumentada recém-lançados pela Apple, terão, entre a leva inicial de aplicativos, uma versão inédita do documentário Cirque du Soleil — Outros Mundos. Produzido pelo cineasta James Cameron e lançado originalmente em 2013, apenas quatro anos depois de Avatar, foi considerado muito à frente de seu tempo, em virtude do uso do 3D, e não teve o sucesso esperado. Agora, o filme deve encontrar público entusiasmado, acostumado às chamadas “experiências imersivas”. O ousado movimento de parceria com a empresa da maçã simboliza um novo momento da companhia circense que reinventou a arte do picadeiro. O salto, agora, é feito de chips, de mãos dadas com as proezas das tecnologias de ponta.
A pirueta virtual foi a saída de renovação de uma trupe que só respira se puder estar um tantinho à frente dos outros. Além do lançamento do espetáculo filmado, há outras iniciativas. Há cinco meses, o Cirque du Soleil estreou no universo dos videogames. Dentro do espaço virtual do Roblox, apresentou um jogo em que é possível gerenciar um circo, como se fosse um SimCity de malabaristas e engolidores de fogo. A plataforma majoritariamente infantojuvenil é atalho para divulgar um novo show, Echo, em cartaz em Montreal, no Canadá. A empresa também prepara uma parceria com a startup Cosm, que anuncia a inauguração de estruturas em formas de cúpulas imensas — a exemplo da Sphere, em Las Vegas —, palco de experiências visuais multicoloridas.
Não poderia faltar, no movimento de evolução, um leque de truques atrelados à inteligência artificial (IA), porque assim caminha a humanidade. Os criadores do grupo garantem manter a sagrada conexão emocional com o público, apesar do uso das máquinas, que supostamente entregariam ideias frias. A tecnologia funcionaria apenas como ferramenta para acelerar algumas etapas, como a seleção de imagens de referência usadas nos estágios iniciais de desenvolvimento dos trabalhos artísticos.
O Cirque du Soleil invade território já razoavelmente ocupado, e que não para de crescer. Nos últimos anos, a profusão de exposições imersivas inventou, por assim dizer, um estilo. Há de tudo: Michelangelo, Van Gogh, Picasso, Frida Kahlo e um imenso etc. É tendência que se espraia. O Museu do Amanhã, no Rio, conhecido pela avalanche de plataformas digitais muito bem pensadas em suas mostras, é termômetro do movimento. “Em 2023, tivemos o público médio mais alto da história do museu, inaugurado em 2015”, diz o diretor da instituição, João Falcão. “Percebemos que há espaço para mergulhar na arte e na tecnologia.”
O receio dos críticos — vale para o Cirque du Soleil, vale para os museus, vale para a vida — é que as produções em massa facilitadas pelos recursos digitais façam as exposições e apresentações perderem alma, incapazes de conversar com a plateia. Há um quê de razão nesse medo; basta comparar a sensação de contemplar o Davi de Michelangelo em Florença com a de estar diante de seu irmão de luzes e sons numa instalação dentro de um shopping center — embora se devam respeitar, por óbvio, as pessoas que se entusiasmam com a chance eletrônica, muitas vezes impossibilitadas de viajar para o exterior. Convém, contudo, deixar os temores de lado, porque a realidade é interessante. “Desde as pinturas rupestres nossa espécie lança mão de tecnologias para expressar suas perspectivas”, afirma Nuricel Villalonga Aguilera, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e presidente da Alpha Lumen, ONG que ajuda jovens em vulnerabilidade social a desenvolver talentos. A adoção de novas ferramentas para a imaginação humana não é, compulsoriamente, sinônimo de pobreza criativa. “Não vejo conflito no uso da IA nas artes, mas há necessidade de discutir limites, estabelecendo critérios”, diz Aguilera.
A TV não matou o cinema. O iPod e o Spotify não mataram a música. Os e-books não mataram os livros de papel. O Cirque du Soleil não enterrou o circo clássico, ainda que exigências positivas da sociedade tenham afastado o uso de animais, por exemplo, mudando a tradição do que se via debaixo de uma lona. Outra convicção: a IA não freará os efeitos impactantes do Soleil. “O digital e o manual são camadas de um mesmo processo”, diz Falcão, do Museu do Amanhã. “Um não existe sem o conhecimento adquirido do outro.” Senhoras e senhores, distinto público, o show deve — e vai — continuar.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880