Nenhum país domina de forma tão contundente a relojoaria de luxo quanto a Suíça. É lá que são produzidas as marcas mais caras e cobiçadas do mundo, como Rolex, Patek Philippe, Audemars Piguet ou Vacheron Constantin, vistas no pulso de esportistas, ícones pop e empresários — e ímã de esquisitas transações de ex-presidentes ao sul do Equador, é bom lembrar. Para além das fronteiras do pequeno país europeu, apenas um punhado de companhias afeitas a marcar as horas conquistou grau de reconhecimento e fama semelhantes, como os franceses da Cartier, os alemães da A. Lange & Söhne ou os japoneses da Grand Seiko. Agora, os Estados Unidos tentam recuperar espaço nesse seleto grupo com criações que buscam retomar uma antiga tradição americana, burilada na primeira metade do século XX e que se perdeu com o tempo.
Quem está à frente desse audacioso movimento é o relojoeiro Josh Shapiro, responsável pela grife que leva seu nome, J.N. Shapiro. Fundada em 2018, a marca cresceu rapidamente nos últimos anos a ponto de mudar do modesto escritório para um enorme galpão em Los Angeles. O destaque é o modelo Resurgence, apresentado em meados do ano passado. Trata-se do primeiro relógio totalmente fabricado nos Estados Unidos em mais de cinquenta anos. Manufaturado em ouro rosé e com movimento (o mecanismo interno) próprio, elaborado com um padrão decorativo conhecido como damaskeening, popular em relógios de pulso antigos, no qual se vê pela transparência a engrenagem a rolar. É item para poucos: o preço, a partir de 70 000 dólares, é equivalente ao dos primos suíços de escol.
Parece estar na hora, de fato, de a indústria americana crescer e aparecer. Shapiro não é o único a buscar reconhecimento. Há um grupo de relojoeiros que oferecem peças exclusivas, em pequenas edições, elaboradas com atenção aos detalhes. A RGM, grife que leva o nome do artesão Roland G. Murphy, lançou o Pennsylvania Tourbillon. A Vortic tem recuperado designs antigos que remetem ao tempo das ferrovias do Velho Oeste. A Devon Works, cria modelos totalmente únicos e diferentes, como o Tread1, finalista do prestigioso Grand Prix d’Horlogerie Genève.
O movimento dá as mãos, reafirme-se, a uma tradição antiga. Nos anos 1850, a indústria relojoeira americana era maior que a suíça. Pioneira, a Waltham Watch Company criou um modelo industrial que usava peças de tamanho-padrão, facilmente substituíveis — antes, cada relógio era único. A mudança transformou a indústria, como a Ford fez com os automóveis. Grifes como Hamilton e Bulova floresceram. Na II Guerra, as fábricas foram requisitadas para produzir armamentos, e depois do fim do conflito os fabricantes sofreram para reacender a produção. A última a fechar as portas nos EUA foi a Hamilton, criadora do popular Ventura, usado até por Elvis Presley, em 1969.
O desafio é complexo, dada a competência suíça. Mas há espaço, devido ao permanente interesse dos cidadãos nos Estados Unidos por novidades e qualidade. “É uma sociedade de consumo afeita a ineditismos e histórias por trás dos produtos”, diz Andréia Meneguete, especialista em branding e professora da pós-graduação da ESPM. Cabe um antigo adágio: “As horas podem ser todas iguais, mas o jeito que você olha para elas, não”.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876