Democracia em risco: o perigo dos apps de mensagem
Base de usuários cresce em todo o mundo levantando preocupações sobre os riscos da falta de transparência
Quando pensamos em política e democracia, se convencionou, pelo menos nos últimos anos, a pensar que o que acontece primeiro nos Estados Unidos logo ganha uma representação em terreno brasileiro. As eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro e os ataques de 6 de janeiro de 2021, no Capitólio, e 8 de janeiro de 2023, em Brasília, são alguns dos exemplos. Agora, no entanto, os americanos temem enfrentar um desafio que já é um velho conhecido do Brasil: a ascensão dos aplicativos de mensagens encriptadas – caixas pretas para o espalhamento de desinformação.
Por lá esses aplicativos não eram tão comuns, até porque os pacotes de SMS ilimitados chegaram muito antes do que aqui, solidificando uma maneira efetiva e barata de comunicação. Nos últimos anos, contudo, como aconteceu em todo o mundo, aplicativos de mensagens como WhatsApp, Telegram e Signal viram suas bases de usuários inflarem – o programa de mensagens da Meta, por exemplo, teve um aumento de quase 10% apenas em 2023, chegando a 98 milhões de adeptos.
Qual o problema?
Especialistas veem essa expansão com preocupação. “Essa é uma das questões mais importantes desse ano, especialmente porque temos eleições em todo o mundo”, diz o chefe da escola de Jornalismo, Mídia e Cultura da Universidade Cardiff, Matt Walsh, em entrevista a VEJA. “Esses aplicativos permitem espalhar mensagens rapidamente, para um grande número de pessoas e, a não ser que você esteja dentro dos grupos, é impossível saber que tipo de conteúdo está sendo compartilhado.”
No Brasil esse problema ficou bem claro. Com a aproximação das últimas eleições, extremamente polarizadas, a quantidade de conteúdos falsos sobre ambos os candidatos à Presidência cresceu exponencialmente nas redes sociais, gerando uma onda de checagem e combate à desinformação. Nos grupos em aplicativos de mensagens, por outro lado, o tipo de conteúdo compartilhado era uma incógnita, impossibilitando o desmentir de informações falsas. “Nas redes sociais em geral é possível fazer uma moderação algorítmica, mas nos aplicativos de mensagem isso é impossível”, afirma Luca Belli, Coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV. “Os aplicativos em que é impossível monitorar o que circula são uma grande fraqueza no combate a desinformação.”
Por ocasião das eleições, em 2022, o WhatsApp, aplicativo de mensagens mais utilizado no mundo, fez um acordo com o Tribunal Superior Eleitoral para não aumentar a capacidade dos grupos e para atrasar o lançamento das comunidades. Passado o período, contudo, a atualização que já estava disponível em outros países chegou por aqui, permitindo grupos de até 1.024 pessoas e comunidades com 5 mil usuários.
E por que discutir isso agora?
Em países onde o uso não é tão disseminado como no Brasil, onde a base chega a 200 milhões de usuários, alguns grupos devem ser mais afetados do que outros. “Aplicativos de mensagens criptografadas terão um efeito importante, especialmente para comunidades ligadas a outras áreas do mundo que os utilizam com maior frequência, como hispanicos e latinos”, afirma o Diretor do Centro de Democracia Sustentável da Universidade do Sul da Flórida, Joshua Scacco. “O uso entre essas comunidades é ainda mais poderoso porque ele facilita que a desinformação ultrapasse as fronteiras nacionais.”
Há ainda um agravante. As inteligências artificiais generativas têm permitido a criação em massa de deep fakes, vídeos e áudios criados artificialmente com a imagem e a voz de uma pessoa pública. Quando compartilhados em redes sociais, como o facebook e o X, ainda que difícil, é possível denunciar a inveracidade, mas isso se torna especialmente problemático se compartilhado de maneira individual, com indivíduos sem letramento tecnológico, por aplicativos de comunicação instantânea.
“O áudio do Biden pedindo que os democratas não fossem votar é um ótimo exemplo do que a mistura entre aplicativos de mensagens e inteligência artificial pode fazer”, afirma Walsh, em referência a um áudio falso do presidente americano, Joe Biden, divulgado em janeiro deste ano, pedindo para que os eleitores democratas não participassem das primárias no estado de New Hampshire. “A grande questão é que nós sabemos que esse é um problema, mas é impossível saber a extensão das consequências.”.
Em resposta a VEJA, a Meta, dona do Whatsapp, respondeu que o aplicativo “é líder do setor […], principalmente na construção de ferramentas para limitar a disseminação de desinformação e capacitar nossos usuários para acessar fontes confiáveis”. Apesar dos grupos gigantescos, o site informa algumas medidas que eles tomam para tentar combater a desinformação em tempo de eleição, como impedir que uma mensagem seja encaminhada para mais de cinco contatos ao mesmo tempo, taguear mensagens encaminhadas e banir usuários que espalham spam. Telegram e Sinal não responderam às tentativas de contato.
Existe uma solução?
Para Scacco, desde 2020 a maioria das plataformas de mídias sociais, recuaram das medidas tomadas anteriormente como restringir o marketing político e banir usuários irresponsáveis. A medida, então, deveria ser agir juridicamente. “A maneira de mudar isso seria os governos criarem regulamentações cujo objetivo principal seja proteger a democracia e a informação pública”, diz Scacco. “Atualmente não vemos isso nos EUA. Outros países, como o Brasil, já deram passos nessa direção.”
Para Walsh, a proatividade das plataformas é a única saída. “Historicamente, sabemos que não existe uma solução perfeita para a propaganda e para a mentira”, afirma. “O que precisamos fazer é garantir que as plataformas estejam cientes das suas responsabilidades com a sociedade e com a democracia.”
Há, ainda, uma questão estrutural a ser resolvida. “Nós pensamos muito em regulação, mas nós também temos que pensar que a maioria das pessoas é direcionada apenas para as redes sociais”. afirma Belli. “A maioria das pessoas não tem uma vacina para a desinformação, é necessário informação e educação para que isso seja aprendido e para que as pessoas saibam utilizar a internet para outros fins.”
Essa, no entanto, não parece ser uma prioridade das plataformas. Na última semana, uma reportagem da Folha de São Paulo trouxe a público que a Meta diminuiu o orçamento destinado a desinformação no Brasil, reduzindo drasticamente o repasse feito às agências de desinformação. Poucos dias depois, anunciaram o fim do Crowdtangle, aplicativo de transparência utilizado para o monitoramento da plataforma.
Em nota a VEJA, a Meta disse que “o WhatsApp tem orgulho de ser parceiro de mais de 50 organizações de verificação de fatos, inclusive no Brasil, que usam produtos do WhatsApp para fornecer uma maneira para as pessoas fazerem perguntas sobre possíveis informações falsas. Somos o primeiro aplicativo de mensagens a ajudar as organizações de checagem de fatos e vamos continuar esses investimentos este ano.”